Cida na Catequese
Blog da catequista Maria Aparecida (Cida).
terça-feira, 2 de agosto de 2016
Amoris laetitia a carta do Papa Francisco
EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL
AMORIS LÆTITIA
DO SANTO PADRE
FRANCISCO
AOS BISPOS
AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
AOS ESPOSOS CRISTÃOS
E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS
SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA
3
1. A alegria do amor que se vive nas famí-
lias é também o júbilo da Igreja. Apesar
dos numerosos sinais de crise no matrimónio
– como foi observado pelos Padres sinodais – «o
desejo de família permanece vivo, especialmente
entre os jovens, e isto incentiva a Igreja ».1
Como
resposta a este anseio, «o anúncio cristão sobre
a família é verdadeiramente uma boa notícia ».2
2. O caminho sinodal permitiu analisar a situação
das famílias no mundo actual, alargar a
nossa perspectiva e reavivar a nossa consciência
sobre a importância do matrimónio e da famí-
lia. Ao mesmo tempo, a complexidade dos temas
tratados mostrou-nos a necessidade de continuar
a aprofundar, com liberdade, algumas questões
doutrinais, morais, espirituais e pastorais. A reflexão
dos pastores e teólogos, se for fiel à Igreja,
honesta, realista e criativa, ajudar-nos-á a alcan-
çar uma maior clareza. Os debates, que têm lugar
nos meios de comunicação ou em publicações e
mesmo entre ministros da Igreja, estendem-se
desde o desejo desenfreado de mudar tudo sem
1 III Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo
dos Bispos, Relatio Synodi (18 de Outubro de 2014), 2. 2 XIV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos
Bispos, Relatio Finalis (24 de Outubro de 2015), 3.
4
suficiente reflexão ou fundamentação até à atitude
que pretende resolver tudo através da aplica-
ção de normas gerais ou deduzindo conclusões
excessivas de algumas reflexões teológicas.
3. Recordando que o tempo é superior ao espaço,
quero reiterar que nem todas as discussões
doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas
através de intervenções magisteriais. Naturalmente,
na Igreja, é necessária uma unidade
de doutrina e práxis, mas isto não impede que
existam maneiras diferentes de interpretar alguns
aspectos da doutrina ou algumas consequências
que decorrem dela. Assim há-de acontecer até
que o Espírito nos conduza à verdade completa
(cf. Jo 16, 13), isto é, quando nos introduzir perfeitamente
no mistério de Cristo e pudermos ver
tudo com o seu olhar. Além disso, em cada país
ou região, é possível buscar soluções mais inculturadas,
atentas às tradições e aos desafios locais.
De facto, « as culturas são muito diferentes entre
si e cada princípio geral (...), se quiser ser observado
e aplicado, precisa de ser inculturado».3
3 Francisco, Discurso no encerramento da XIV Assembleia
Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (24 de Outubro de 2015):
L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 29/X/2015),
9; cf. Pont. Comissão Bíblica, Fé e cultura à luz da Bíblia. Actas da
Sessão Plenária de 1979 da Pontifícia Comissão Bíblica (Turim 1981);
Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo
contemporâneo Gaudium et spes, 44; João Paulo II, Carta enc.
Redemptoris missio (7 de Dezembro de 1990), 52: AAS 83 (1991),
300; Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro
de 2013), 69.117: AAS 105 (2013), 1049.1068-1069.
5
4. Em todo o caso, devo dizer que o caminho
sinodal se revestiu duma grande beleza e proporcionou
muita luz. Agradeço tantas contribuições
que me ajudaram a considerar, em toda a sua
amplitude, os problemas das famílias do mundo
inteiro. O conjunto das intervenções dos Padres,
que ouvi com atenção constante, pareceu-me um
precioso poliedro, formado por muitas preocupações
legítimas e questões honestas e sinceras.
Por isso, considerei oportuno redigir uma
Exortação Apostólica pós-sinodal que recolha
contribuições dos dois Sínodos recentes sobre a
família, acrescentando outras considerações que
possam orientar a reflexão, o diálogo ou a práxis
pastoral, e simultaneamente ofereçam coragem,
estímulo e ajuda às famílias na sua doação e nas
suas dificuldades.
5. Esta Exortação adquire um significado especial
no contexto deste Ano Jubilar da Misericórdia,
em primeiro lugar, porque a vejo como uma
proposta para as famílias cristãs, que as estimule
a apreciar os dons do matrimónio e da família e
a manter um amor forte e cheio de valores como
a generosidade, o compromisso, a fidelidade e a
paciência; em segundo lugar, porque se propõe
encorajar todos a serem sinais de misericórdia e
proximidade para a vida familiar, onde esta não
se realize perfeitamente ou não se desenrole em
paz e alegria.
6. No desenvolvimento do texto, começarei
por uma abertura inspirada na Sagrada Escritura,
6
que lhe dê o tom adequado. A partir disso, considerarei
a situação actual das famílias, para manter
os pés assentes na terra. Depois lembrarei alguns
elementos essenciais da doutrina da Igreja sobre
o matrimónio e a família, seguindo-se os dois capítulos
centrais, dedicados ao amor. Em seguida
destacarei alguns caminhos pastorais que nos levem
a construir famílias sólidas e fecundas segundo
o plano de Deus, e dedicarei um capítulo
à educação dos filhos. Depois deter-me-ei sobre
um convite à misericórdia e ao discernimento
pastoral perante situações que não correspondem
plenamente ao que o Senhor nos propõe;
e, finalmente, traçarei breves linhas de espiritualidade
familiar.
7. Devido à riqueza que os dois anos de reflexão
do caminho sinodal ofereceram, esta Exortação
aborda, com diferentes estilos, muitos
e variados temas. Isto explica a sua inevitável
extensão. Por isso, não aconselho uma leitura
geral apressada. Poderá ser de maior proveito,
tanto para as famílias como para os agentes de
pastoral familiar, aprofundar pacientemente
uma parte de cada vez ou procurar nela aquilo
de que precisam em cada circunstância concreta.
É provável, por exemplo, que os esposos se
identifiquem mais com o quarto e quinto capí-
tulo, que os agentes pastorais tenham especial
interesse pelo capítulo sexto, e que todos se sintam
muito interpelados pelo oitavo. Espero que
cada um, através da leitura, se sinta chamado a
7
cuidar com amor da vida das famílias, porque
elas « não são um problema, são sobretudo uma
oportunidade ».4
4 Francisco, Discurso no Encontro com as Famílias, em Santiago
de Cuba (22 de Setembro de 2015): L’Osservatore Romano
(ed. semanal portuguesa de 24/IX/2015), 14.
9
CAPÍTULO I
À LUZ DA PALAVRA
8. A Bíblia aparece cheia de famílias, gerações,
histórias de amor e de crises familiares, desde as
primeiras páginas onde entra em cena a famí-
lia de Adão e Eva, com o seu peso de violência
mas também com a força da vida que continua
(cf. Gn 4), até às últimas páginas onde aparecem
as núpcias da Esposa e do Cordeiro (cf. Ap 21,
2.9). As duas casas de que fala Jesus, construí-
das ora sobre a rocha ora sobre a areia (cf. Mt 7,
24-27), representam muitas situações familiares,
criadas pela liberdade de quantos habitam nelas,
porque – como escreve o poeta – «toda a casa é
um candelabro».5
Agora entremos numa dessas
casas, guiados pelo Salmista, através dum canto
que ainda hoje se proclama nas liturgias nupciais
quer judaica quer cristã:
«Felizes os que obedecem ao Senhor
e andam nos seus caminhos.
Comerás do fruto do teu próprio trabalho:
assim serás feliz e viverás contente.
A tua esposa será como videira fecunda
na intimidade do teu lar;
5 Jorge Luís Borges, «Calle desconocida », in Fervor de
Buenos Aires (Buenos Aires 2011), 23.
10
os teus filhos serão como rebentos de oliveira
ao redor da tua mesa.
Assim vai ser abençoado
o homem que obedece ao Senhor.
O Senhor te abençoe do monte Sião!
Possas contemplar a prosperidade de Jerusalém
todos os dias da tua vida,
e chegues a ver os filhos dos teus filhos.
Paz a Israel!» (Sl 128/127, 1-6).
Tu e a tua esposa
9. Cruzemos então o limiar desta casa serena,
com a sua família sentada ao redor da mesa em
dia de festa. No centro, encontramos o casal formado
pelo pai e a mãe com toda a sua história de
amor. Neles se realiza aquele desígnio primordial
que o próprio Cristo evoca com decisão: «Não
lestes que o Criador, desde o princípio, fê-los homem
e mulher?» (Mt 19, 4). E retoma o mandato
do livro do Génesis: «Por esse motivo, o homem
deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e
os dois serão uma só carne » (Gn 2, 24).
10. Aqueles dois primeiros capítulos grandiosos
do Génesis oferecem-nos a representação
do casal humano na sua realidade fundamental.
Naquele trecho inicial da Bíblia, sobressaem algumas
afirmações decisivas. A primeira, citada
sinteticamente por Jesus, declara: «Deus criou
o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem
de Deus; Ele os criou homem e mulher» (1, 27).
Surpreendentemente, a «imagem de Deus» tem
11
como paralelo explicativo precisamente o casal
«homem e mulher». Quererá isto significar que
o próprio Deus é sexuado ou tem a seu lado uma
companheira divina, como acreditavam algumas
religiões antigas? Não, obviamente! Sabemos
com quanta clareza a Bíblia rejeitou como idolátricas
tais crenças, generalizadas entre os cananeus
da Terra Santa. Preserva-se a transcendência
de Deus, mas, uma vez que é ao mesmo tempo o
Criador, a fecundidade do casal humano é «imagem»
viva e eficaz, sinal visível do acto criador.
11. O casal que ama e gera a vida é a verdadeira
« escultura » viva (não a de pedra ou de ouro, que
o Decálogo proíbe), capaz de manifestar Deus
criador e salvador. Por isso, o amor fecundo chega
a ser o símbolo das realidades íntimas de Deus
(cf. Gn 1, 28; 9, 7; 17, 2-5.16; 28, 3; 35, 11; 48,
3-4). Devido a isso a narrativa do Génesis, atendo-se
à chamada «tradição sacerdotal», aparece
permeada por várias sequências genealógicas (cf.
Gn 4, 17-22.25-26; 5; 10; 11, 10-32; 25, 1-4.12-
17.19-26; 36): de facto, a capacidade que o casal
humano tem de gerar é o caminho por onde se
desenrola a história da salvação. Sob esta luz, a
relação fecunda do casal torna-se uma imagem
para descobrir e descrever o mistério de Deus,
fundamental na visão cristã da Trindade que, em
Deus, contempla o Pai, o Filho e o Espírito de
amor. O Deus Trindade é comunhão de amor; e
a família, o seu reflexo vivente. A propósito, são
elucidativas estas palavras de São João Paulo II:
12
«O nosso Deus, no seu mistério mais íntimo, não
é solidão, mas uma família, dado que tem em Si
mesmo paternidade, filiação e a essência da família,
que é o amor. Este amor, na família divina,
é o Espírito Santo».6
Concluindo, a família não
é alheia à própria essência divina.7
Este aspecto
trinitário do casal encontra uma nova representação
na teologia paulina, quando o Apóstolo relaciona
o casal com o «mistério» da união entre
Cristo e a Igreja (cf. Ef 5, 21-33).
12. Mas Jesus, na sua reflexão sobre o matrimónio,
alude a outra página do Génesis – o
capítulo 2 – onde aparece um retrato admirável
do casal com detalhes elucidativos. Escolhemos
apenas dois. O primeiro é a inquietação vivida
pelo homem, que busca « uma auxiliar semelhante
» (vv. 18.20), capaz de resolver esta solidão
que o perturba e que não encontra remédio
na proximidade dos animais e da criação inteira.
A expressão original hebraica faz-nos pensar
numa relação directa, quase «frontal» – olhos
nos olhos –, num diálogo também sem palavras,
porque, no amor, os silêncios costumam ser mais
eloquentes do que as palavras: é o encontro com
um rosto, um «tu » que reflecte o amor divino e
constitui – como diz um sábio bíblico – «o primeiro
dos bens, uma ajuda condizente e uma coluna
de apoio» (Sir 36, 24). Ou como exclamará a
6 Homilia na Eucaristia celebrada em Puebla de los Ángeles
(28 de Janeiro de 1979), 2: AAS 71 (1979), 184. 7 Cf. ibidem.
13
mulher do Cântico dos Cânticos, numa confissão
estupenda de amor e doação na reciprocidade, «o
meu amado é para mim e eu para ele (...). Eu sou
para o meu amado e o meu amado é para mim»
(2, 16; 6, 3).
13. Deste encontro, que cura a solidão, surge a
geração e a família. Este é um segundo detalhe,
que podemos evidenciar: Adão, que é também o
homem de todos os tempos e de todas as regiões
do nosso planeta, juntamente com a sua esposa
dá origem a uma nova família, como afirma Jesus
citando o Génesis: «Unir-se-á à sua mulher e
serão os dois um só» (Mt 19, 5; cf. Gn 2, 24). No
original hebraico, o verbo « unir-se » indica uma
estreita sintonia, uma adesão física e interior, a
ponto de se utilizar para descrever a união com
Deus, como canta o orante: «A minha alma está
unida a Ti» (Sl 63/62, 9). Deste modo, evoca-se
a união matrimonial não apenas na sua dimensão
sexual e corpórea, mas também na sua doação
voluntária de amor. O fruto desta união é «tornar-se
uma só carne », quer no abraço físico, quer
na união dos corações e das vidas e, porventura,
no filho que nascerá dos dois e, em si mesmo,
há-de levar as duas « carnes», unindo-as genética
e espiritualmente.
Os teus filhos como rebentos de oliveira
14. Retomemos o canto do Salmista. Lá, dentro
da casa onde o homem e a sua esposa estão
sentados à mesa, aparecem os filhos que os
14
acompanham « como rebentos de oliveira » (Sl
128/127, 3), isto é, cheios de energia e vitalidade.
Se os pais são como que os alicerces da casa,
os filhos constituem as «pedras vivas» da família
(cf. 1 Ped 2, 5). É significativo que, no Antigo
Testamento, a palavra que aparece mais vezes depois
da designação divina (YHWH, o « Senhor»)
é «filho» (ben), um termo que remete para o verbo
hebraico que significa « construir» (banah).
Por isso, noutro Salmo, exalta-se o dom dos filhos
com imagens que aludem quer à edificação
duma casa, quer à vida social e comercial que se
desenrolava às portas da cidade: « Se o Senhor
não edificar a casa, em vão trabalham os construtores.
(...) Olhai: os filhos são uma bênção do
Senhor; o fruto das entranhas, uma verdadeira
dádiva. Como flechas nas mãos de um guerreiro,
assim são os filhos nascidos na juventude. Feliz o
homem que deles encheu a sua aljava! Não será
envergonhado pelos seus inimigos, quando com
eles discutir às portas da cidade » (Sl 127/126,
1.3-5). É verdade que estas imagens reflectem a
cultura duma sociedade antiga, mas a presença
dos filhos é, em todo o caso, um sinal de plenitude
da família na continuidade da mesma história
de salvação, de geração em geração.
15. Sob esta luz, podemos ver outra dimensão
da família. Sabemos que, no Novo Testamento,
se fala da «igreja que se reúne em casa » (cf.
1 Cor 16, 19; Rm 16, 5; Col 4, 15; Flm 2). O espaço
vital duma família podia transformar-se em igreja
15
doméstica, em local da Eucaristia, da presença de
Cristo sentado à mesma mesa. Inesquecível é a
cena descrita no Apocalipse: «Olha que Eu estou
à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz
e abrir a porta, Eu entrarei na sua casa e cearei
com ele e ele comigo» (3, 20). Esboça-se assim
uma casa que abriga no seu interior a presença
de Deus, a oração comum e, por conseguinte, a
bênção do Senhor. Isto mesmo se afirma no Salmo
128, que nos serviu de base: «Assim vai ser
abençoado o homem que obedece ao Senhor. O
Senhor te abençoe do monte Sião!» (vv. 4-5).
16. A Bíblia considera a família também como
o local da catequese dos filhos. Vê-se isto claramente
na descrição da celebração pascal (cf. Ex
12, 26-27; Dt 6, 20-25) – mais tarde explicitado
na haggadah judaica –, concretamente no diálogo
que acompanha o rito da ceia pascal. Eis como
um Salmo exalta o anúncio familiar da fé: «O
que ouvimos e aprendemos e os nossos antepassados
nos transmitiram, não o ocultaremos aos
seus descendentes; tudo contaremos às gerações
vindouras: as glórias do Senhor e o seu poder,
e as maravilhas que Ele fez. Ele estabeleceu um
preceito em Jacob, instituiu uma lei em Israel. E
ordenou aos nossos pais que a ensinassem aos
seus filhos, para que as gerações futuras a conhecessem
e os filhos que haviam de nascer a contassem
aos seus próprios filhos» (Sl 78/77, 3-6). Por
isso, a família é o lugar onde os pais se tornam os
primeiros mestres da fé para seus filhos. É uma
16
tarefa « artesanal», pessoa a pessoa: « Se amanhã
o teu filho te perguntar (...), dir-lhe-ás...» (Ex 13,
14). Assim, entoarão o seu canto ao Senhor as
diferentes gerações, «os jovens e as donzelas, os
velhos e as crianças» (Sl 148, 12).
17. Os pais têm o dever de cumprir, com seriedade,
a sua missão educativa, como ensinam
frequentemente os sábios da Bíblia (cf. Pr 3, 11-
12; 6, 20-22; 13, 1; 22, 15; 23, 13-14; 29, 17). Os
filhos são chamados a receber e praticar o mandamento
«honra o teu pai e a tua mãe » (Ex 20,
12), querendo o verbo «honrar» indicar o cumprimento
das obrigações familiares e sociais em
toda a sua plenitude, sem os transcurar com desculpas
religiosas (cf. Mc 7, 11-13). Com efeito, «o
que honra o pai alcança o perdão dos pecados, e
quem honra a sua mãe é semelhante ao que acumula
tesouros» (Sir 3, 3-4).
18. O Evangelho lembra-nos também que os
filhos não são uma propriedade da família, mas
espera-os o seu caminho pessoal de vida. Se é
verdade que Jesus Se apresenta como modelo de
obediência a seus pais terrenos, submetendo-Se
a eles (cf. Lc 2, 51), também é certo que Ele faz
ver que a escolha de vida do filho e a sua pró-
pria vocação cristã podem exigir uma separação
para realizar a entrega de si mesmo ao Reino de
Deus (cf. Mt 10, 34-37; Lc 9, 59-62). Mais ainda!
Ele próprio, aos doze anos, responde a Maria e a
José que tem uma missão mais alta a realizar para
além da sua família histórica (cf. Lc 2, 48-50). Por
17
isso, exalta a necessidade de outros laços mais
profundos, mesmo dentro das relações familiares:
«Minha mãe e meus irmãos são aqueles que
ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática »
(Lc 8, 21). Por outro lado, Jesus presta tal aten-
ção às crianças – consideradas, na sociedade do
Médio Oriente antigo, como sujeitos sem particulares
direitos e inclusivamente como parte da
propriedade familiar –, que chega ao ponto de as
propor aos adultos como mestres, devido à sua
confiança simples e espontânea nos outros. «Em
verdade vos digo: Se não voltardes a ser como
as criancinhas, não podereis entrar no Reino do
Céu. Quem, pois, se fizer humilde como este menino
será o maior no Reino do Céu » (Mt 18, 3-4).
Um rasto de sofrimento e sangue
19. O idílio, que o Salmo 128 apresenta, não
nega uma amarga realidade que marca toda a Sagrada
Escritura: é a presença do sofrimento, do
mal, da violência, que dilaceram a vida da família
e a sua comunhão íntima de vida e de amor. Não
é de estranhar que o discurso de Cristo sobre
o matrimónio (cf. Mt 19, 3-9) apareça inserido
numa disputa a respeito do divórcio. A Palavra
de Deus é testemunha constante desta dimensão
obscura que assoma já nos primórdios, quando,
com o pecado, a relação de amor e pureza entre o
homem e a mulher se transforma num domínio:
«Procurarás apaixonadamente o teu marido, mas
ele te dominará » (Gn 3, 16).
18
20. É um rasto de sofrimento e sangue que
atravessa muitas páginas da Bíblia, a começar pela
violência fratricida de Caim contra Abel e dos vá-
rios litígios entre os filhos e entre as esposas dos
patriarcas Abraão, Isaac e Jacob, passando pelas
tragédias que cobrem de sangue a família de David,
até às numerosas dificuldades familiares que
regista a história de Tobias ou a confissão amarga
de Job abandonado: Deus « afastou de mim
os meus irmãos, e os meus amigos retiraram-se
como estranhos. (...) A minha mulher sente repugnância
do meu hálito e tornei-me fétido para
os meus próprios filhos» (Jb 19, 13.17).
21. O próprio Jesus nasce numa família modesta,
que à pressa tem de fugir para uma terra
estrangeira. Entra na casa de Pedro, onde a sua
sogra está doente (cf. Mc 1, 29-31), deixa-Se envolver
no drama da morte na casa de Jairo ou no
lar de Lázaro (cf. Mc 5, 22-24.35-43; Jo 11, 1-44),
ouve o pranto desesperado da viúva de Naim pelo
seu filho morto (cf. Lc 7, 11-15); atende o grito
do pai do epiléptico numa pequena povoação rural
(cf. Mc 9, 17-27). Encontra-Se com publicanos,
como Mateus ou Zaqueu, nas suas próprias
casas (cf. Mt 9, 9-13; Lc 19, 1-10), e também com
pecadoras, como a mulher que invade a casa do
fariseu (cf. Lc 7, 36-50). Conhece as ansiedades
e as tensões das famílias, inserindo-as nas suas
parábolas: desde filhos que deixam a própria casa
para tentar alguma aventura (cf. Lc 15, 11-32) até
filhos difíceis com comportamentos inexplicá-
19
veis (cf. Mt 21, 28-31) ou vítimas da violência (cf.
Mc 12, 1-9). Interessa-Se ainda pela situação embaraçosa
que se vive numas bodas pela falta de
vinho (cf. Jo 2, 1-10) ou pela recusa dos convidados
a participar nelas (cf. Mt 22, 1-10), e conhece
também o pesadelo que representa a perda duma
moeda numa família pobre (cf. Lc 15, 8-10).
22. Nesta breve resenha, podemos comprovar
que a Palavra de Deus não se apresenta como
uma sequência de teses abstractas, mas como
uma companheira de viagem, mesmo para as
famílias que estão em crise ou imersas nalguma
tribulação, mostrando-lhes a meta do caminho,
quando Deus « enxugar todas as lágrimas dos
seus olhos, e não haverá mais morte, nem luto,
nem pranto, nem dor» (Ap 21, 4).
O fruto do teu próprio trabalho
23. No início do Salmo 128, o pai é apresentado
como um trabalhador que pode, com a obra
das suas mãos, manter o bem-estar físico e a serenidade
da sua família: «Comerás do fruto do
teu próprio trabalho: assim serás feliz e viverás
contente » (v. 2). O facto de o trabalho ser uma
parte fundamental da dignidade da vida humana
deduz-se das primeiras páginas da Bíblia, quando
se afirma que Deus « colocou [o homem] no
Jardim do Éden, para o cultivar e, também, para
o guardar» (Gn 2, 15). Temos aqui a imagem do
trabalhador que transforma a matéria e aproveita
as energias da criação, fazendo nascer o «pão
20
de tanta fadiga » (Sl 127/126, 2), para além de se
cultivar a si mesmo.
24. O trabalho torna possível simultaneamente
o desenvolvimento da sociedade, o sustento da família
e também a sua estabilidade e fecundidade:
«Possas contemplar a prosperidade de Jerusalém
todos os dias da tua vida e chegues a ver os filhos
dos teus filhos» (Sl 128/127, 5-6). No livro
dos Provérbios, realça-se também a tarefa da mãe
de família, cujo trabalho aparece descrito nas suas
múltiplas mansões diárias, merecendo o elogio
do marido e dos filhos (cf. 31, 10-31). O próprio
apóstolo Paulo sentia-se orgulhoso por ter vivido
sem ser um fardo para os outros, porque trabalhou
com as suas mãos, garantindo-se deste modo
o sustento (cf. Act 18, 3; 1 Cor 4, 12; 9, 12). Estava
tão convencido da necessidade do trabalho, que
estabeleceu esta férrea norma para as suas comunidades:
«Se alguém não quer trabalhar, também
não coma » (2 Ts 3,10; cf. 1 Ts 4, 11).
25. Dito isto, compreende-se que o desemprego
e a precariedade laboral gerem sofrimento,
como atesta o livro de Rute e como lembra Jesus
na parábola dos trabalhadores sentados, em ócio
forçado, na praça da localidade (cf. Mt 20, 1-16),
ou como pôde verificar pessoalmente vendo-Se
muitas vezes rodeado de necessitados e famintos.
Isto mesmo vive tragicamente a sociedade actual
em muitos países, e esta falta de emprego afecta,
de várias maneiras, a serenidade das famílias.
21
26. Também não podemos esquecer a degeneração
que o pecado introduz na sociedade, quando
o homem se comporta como um tirano com
a natureza, devastando-a, utilizando-a de forma
egoísta e até brutal. Como consequência, temos,
simultaneamente, a desertificação do solo (cf.
Gn 3, 17-19) e os desequilíbrios económicos e
sociais, contra os quais se levanta, abertamente,
a voz dos profetas, desde Elias (cf. 1 Re 21) até
chegar às palavras que o próprio Jesus pronuncia
contra a injustiça (cf. Lc 12, 13-21; 16,1-31).
A ternura do abraço
27. Como distintivo dos seus discípulos, Cristo
pôs sobretudo a lei do amor e do dom de si
mesmo aos outros (cf. Mt 22, 39; Jo 13, 34), e
fê-lo através dum princípio que um pai ou uma
mãe costumam testemunhar na sua própria vida:
«Ninguém tem maior amor do que quem dá a
vida pelos seus amigos» (Jo 15, 13). Frutos do
amor são também a misericórdia e o perdão.
Nesta linha, é emblemática a cena que nos apresenta
uma adúltera na explanada do templo de
Jerusalém, primeiro, rodeada pelos seus acusadores
e, depois, sozinha com Jesus, que não a condena
mas convida-a a uma vida mais digna (cf.
Jo 8, 1-11).
28. No horizonte do amor, essencial na experiência
cristã do matrimónio e da família, destaca-se
ainda outra virtude, um pouco ignorada
nestes tempos de relações frenéticas e superfi-
22
ciais: a ternura. Detenhamo-nos no terno e denso
Salmo 131, onde – como se observa, aliás,
noutros textos (cf. Ex 4, 22; Is 49, 15; Sl 27/26,
10) – a união entre o fiel e o seu Senhor é expressa
com traços de amor paterno e materno. Lá
aparece a intimidade delicada e carinhosa entre a
mãe e o seu bebé, um recém-nascido que dorme
nos braços de sua mãe depois de ter sido amamentado.
Como indica a palavra hebraica gamùl,
trata-se dum menino que acaba de mamar e se
agarra conscientemente à mãe que o leva ao colo.
É, pois, uma intimidade consciente, e não meramente
biológica. Por isso canta o Salmista: «Estou
sossegado e tranquilo, como criança saciada
ao colo da mãe » (Sl 131/130, 2). Paralelamente,
podemos ver outra cena na qual o profeta Oseias
coloca na boca de Deus, visto como pai, estas
palavras comoventes: «Quando Israel era ainda
menino, Eu amei-o (...), Eu ensinava Efraim a
andar, trazia-o nos meus braços (...). Segurava-
-o com laços de ternura, com laços de amor, fui
para ele como os que levantam uma criancinha
contra o seu rosto; inclinei-me para ele para lhe
dar de comer» (Os 11, 1.3-4).
29. Com este olhar feito de fé e amor, de graça
e compromisso, de família humana e Trindade
divina, contemplamos a família que a Palavra de
Deus confia nas mãos do marido, da esposa e
dos filhos, para que formem uma comunhão de
pessoas que seja imagem da união entre o Pai, o
Filho e o Espírito Santo. Por sua vez, a actividade
23
geradora e educativa é um reflexo da obra criadora
do Pai. A família é chamada a compartilhar
a oração diária, a leitura da Palavra de Deus e a
comunhão eucarística, para fazer crescer o amor
e tornar-se cada vez mais um templo onde habita
o Espírito.
30. Cada família tem diante de si o ícone da
família de Nazaré, com o seu dia-a-dia feito de
fadigas e até de pesadelos, como quando teve que
sofrer a violência incompreensível de Herodes,
experiência que ainda hoje se repete tragicamente
em muitas famílias de refugiados descartados
e inermes. Como os Magos, as famílias são convidadas
a contemplar o Menino com sua Mãe, a
prostrar-se e adorá-Lo (cf. Mt 2, 11). Como Maria,
são exortadas a viver, com coragem e serenidade,
os desafios familiares tristes e entusiasmantes, e
a guardar e meditar no coração as maravilhas de
Deus (cf. Lc 2, 19.51). No tesouro do coração de
Maria, estão também todos os acontecimentos
de cada uma das nossas famílias, que Ela guarda
solicitamente. Por isso pode ajudar-nos a interpretá-los
de modo a reconhecer a mensagem de
Deus na história familiar.
25
CAPÍTULO II
A REALIDADE E OS DESAFIOS
DAS FAMÍLIAS
31. O bem da família é decisivo para o futuro
do mundo e da Igreja. Inúmeras são as análises
feitas sobre o matrimónio e a família, sobre
as suas dificuldades e desafios actuais. É salutar
prestar atenção à realidade concreta, porque «os
pedidos e os apelos do Espírito ressoam também
nos acontecimentos da história » através dos
quais « a Igreja pode ser guiada para uma compreensão
mais profunda do inexaurível mistério
do matrimónio e da família ».8
Não tenho a pretensão
de apresentar aqui tudo aquilo que poderia
ser dito sobre os vários temas relacionados
com a família no contexto actual. Mas, dado que
os Padres sinodais ofereceram um panorama da
realidade das famílias de todo o mundo, considero
oportuno recolher algumas das suas contribuições
pastorais, acrescentando outras preocupações
derivadas da minha própria visão.
A situação actual da família
32. «Fiéis ao ensinamento de Cristo, olhamos a
realidade actual da família em toda a sua comple-
8 João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro
de 1981), 4: AAS 74 (1982), 84.
26
xidade, nas suas luzes e sombras. (...) Hoje, a mudança
antropológico-cultural influencia todos os
aspectos da vida e requer uma abordagem analí-
tica e diversificada ».9
Já no contexto de várias dé-
cadas atrás, os bispos da Espanha reconheciam
uma realidade doméstica com mais espaços de
liberdade, « com uma distribuição equitativa de
encargos, responsabilidades e tarefas (...). Valorizando
mais a comunicação pessoal entre os esposos,
contribui-se para humanizar toda a vida
familiar. (...) Nem a sociedade em que vivemos
nem aquela para onde caminhamos permitem a
sobrevivência indiscriminada de formas e modelos
do passado».10 Mas « estamos conscientes da
direcção que vão tomando as mudanças antropológico-culturais,
em razão das quais os indivíduos
são menos apoiados do que no passado pelas estruturas
sociais na sua vida afectiva e familiar».11
33. Por outro lado, «há que considerar o crescente
perigo representado por um individualismo
exagerado que desvirtua os laços familiares
e acaba por considerar cada componente da
família como uma ilha, fazendo prevalecer, em
certos casos, a ideia dum sujeito que se constrói
segundo os seus próprios desejos assumidos com
carácter absoluto».12 «As tensões causadas por
9 Relatio Synodi 2014, 5. 10 Conferência Episcopal Espanhola, Matrimonio y familia
(6 de Julho de 1979), 3.16.23. 11 Relatio Finalis 2015, 5. 12 Relatio Synodi 2014, 5.
27
uma cultura individualista exagerada da posse
e fruição geram no seio das famílias dinâmicas
de impaciência e agressividade ».13 Gostaria de
acrescentar o ritmo da vida actual, o stresse, a
organização social e laboral, porque são factores
culturais que colocam em risco a possibilidade
de opções permanentes. Ao mesmo tempo, encontramo-nos
perante fenómenos ambíguos.
Por exemplo, aprecia-se uma personalização que
aposte na autenticidade em vez de reproduzir
comportamentos prefixados. É um valor que
pode promover as diferentes capacidades e a espontaneidade,
mas, se for mal orientado, pode
criar atitudes de permanente suspeita, fuga dos
compromissos, confinamento no conforto, arrogância.
A liberdade de escolher permite projectar
a própria vida e cultivar o melhor de si mesmo,
mas, se não se tiver objectivos nobres e disciplina
pessoal, degenera numa incapacidade de se dar
generosamente. De facto, em muitos países onde
diminui o número de matrimónios, cresce o nú-
mero de pessoas que decidem viver sozinhas ou
que convivem sem coabitar. Podemos assinalar
também um louvável sentido de justiça; mas, mal
compreendido, transforma os cidadãos em clientes
que só exigem o cumprimento de serviços.
34. Se estes riscos se transpõem para o modo
de compreender a família, esta pode transformar-se
num lugar de passagem, aonde uma pes-
13 Relatio Finalis 2015, 8.
28
soa vai quando lhe parecer conveniente para si
mesma ou para reclamar direitos, enquanto os
vínculos são deixados à precariedade volúvel dos
desejos e das circunstâncias. No fundo, hoje é
fácil confundir a liberdade genuína com a ideia
de que cada um julga como lhe parece, como se,
para além dos indivíduos, não houvesse verdades,
valores, princípios que nos guiam, como se
tudo fosse igual e tudo se devesse permitir. Neste
contexto, o ideal matrimonial com um compromisso
de exclusividade e estabilidade acaba por
ser destruído pelas conveniências contingentes
ou pelos caprichos da sensibilidade. Teme-se a
solidão, deseja-se um espaço de protecção e fidelidade
mas, ao mesmo tempo, cresce o medo de
ficar encurralado numa relação que possa adiar a
satisfação das aspirações pessoais.
35. Como cristãos, não podemos renunciar
a propor o matrimónio, para não contradizer a
sensibilidade actual, para estar na moda, ou por
sentimentos de inferioridade face ao descalabro
moral e humano; estaríamos a privar o mundo
dos valores que podemos e devemos oferecer. É
verdade que não tem sentido limitar-nos a uma
denúncia retórica dos males actuais, como se isso
pudesse mudar qualquer coisa. De nada serve
também querer impor normas pela força da autoridade.
É-nos pedido um esforço mais responsável
e generoso, que consiste em apresentar as
razões e os motivos para se optar pelo matrimó-
nio e a família, de modo que as pessoas estejam
29
melhor preparadas para responder à graça que
Deus lhes oferece.
36. Ao mesmo tempo devemos ser humildes e
realistas, para reconhecer que às vezes a nossa
maneira de apresentar as convicções cristãs e a
forma como tratamos as pessoas ajudaram a provocar
aquilo de que hoje nos lamentamos, pelo
que nos convém uma salutar reacção de autocrí-
tica. Além disso, muitas vezes apresentámos de
tal maneira o matrimónio que o seu fim unitivo,
o convite a crescer no amor e o ideal de ajuda
mútua ficaram ofuscados por uma ênfase quase
exclusiva no dever da procriação. Também não
fizemos um bom acompanhamento dos jovens
casais nos seus primeiros anos, com propostas
adaptadas aos seus horários, às suas linguagens,
às suas preocupações mais concretas. Outras
vezes, apresentámos um ideal teológico do matrimónio
demasiado abstracto, construído quase
artificialmente, distante da situação concreta
e das possibilidades efectivas das famílias tais
como são. Esta excessiva idealização, sobretudo
quando não despertámos a confiança na graça,
não fez com que o matrimónio fosse mais desejável
e atraente; muito pelo contrário.
37. Durante muito tempo pensámos que, com a
simples insistência em questões doutrinais, bioé-
ticas e morais, sem motivar a abertura à graça,
já apoiávamos suficientemente as famílias, consolidávamos
o vínculo dos esposos e enchíamos
de sentido as suas vidas compartilhadas. Temos
30
dificuldade em apresentar o matrimónio mais
como um caminho dinâmico de crescimento e
realização do que como um fardo a carregar a
vida inteira. Também nos custa deixar espaço à
consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem
o melhor que podem ao Evangelho no meio
dos seus limites e são capazes de realizar o seu
próprio discernimento perante situações onde se
rompem todos os esquemas. Somos chamados a
formar as consciências, não a pretender substituí-las.
38. Devemos dar graças pela maioria das pessoas
valorizar as relações familiares que querem
permanecer no tempo e garantem o respeito
pelo outro. Por isso, aprecia-se que a Igreja ofereça
espaços de apoio e aconselhamento sobre
questões relacionadas com o crescimento do
amor, a superação dos conflitos e a educação dos
filhos. Muitos estimam a força da graça que experimentam
na Reconciliação sacramental e na
Eucaristia, que lhes permite enfrentar os desafios
do matrimónio e da família. Nalguns países, especialmente
em várias partes da África, o secularismo
não conseguiu enfraquecer alguns valores
tradicionais e, em cada matrimónio, gera-se uma
forte união entre duas famílias alargadas, onde
se conserva ainda um sistema bem definido de
gestão de conflitos e dificuldades. No mundo actual,
aprecia-se também o testemunho dos cônjuges
que não se limitam a perdurar no tempo,
mas continuam a sustentar um projecto comum
31
e conservam o afecto. Isto abre a porta a uma
pastoral positiva, acolhedora, que torna possível
um aprofundamento gradual das exigências do
Evangelho. No entanto, muitas vezes agimos na
defensiva e gastámos as energias pastorais multiplicando
os ataques ao mundo decadente, com
pouca capacidade de propor e indicar caminhos
de felicidade. Muitos não sentem a mensagem da
Igreja sobre o matrimónio e a família como um
reflexo claro da pregação e das atitudes de Jesus,
o qual, ao mesmo tempo que propunha um ideal
exigente, não perdia jamais a proximidade compassiva
às pessoas frágeis como a samaritana ou
a mulher adúltera.
39. Isto não significa deixar de advertir a decadência
cultural que não promove o amor e a doa-
ção. As consultações que antecederam os dois
últimos Sínodos trouxeram à luz vários sintomas
da « cultura do provisório». Refiro-me, por
exemplo, à rapidez com que as pessoas passam
duma relação afectiva para outra. Crêem que o
amor, como acontece nas redes sociais, se possa
conectar ou desconectar ao gosto do consumidor
e inclusive bloquear rapidamente. Penso
também no medo que desperta a perspectiva
dum compromisso permanente, na obsessão
pelo tempo livre, nas relações que medem custos
e benefícios e mantêm-se apenas se forem um
meio para remediar a solidão, ter protecção ou
receber algum serviço. Transpõe-se para as rela-
ções afectivas o que acontece com os objectos e
32
o meio ambiente: tudo é descartável, cada um usa
e joga fora, gasta e rompe, aproveita e espreme
enquanto serve; depois… adeus. O narcisismo
torna as pessoas incapazes de olhar para além
de si mesmas, dos seus desejos e necessidades.
Mas quem usa os outros, mais cedo ou mais tarde
acaba por ser usado, manipulado e abandonado
com a mesma lógica. Faz impressão ver que as
rupturas ocorrem, frequentemente, entre adultos
já de meia-idade que buscam uma espécie de « autonomia
» e rejeitam o ideal de envelhecer juntos
cuidando-se e apoiando-se.
40. «Correndo o risco de simplificar, poderemos
dizer que vivemos numa cultura que impele
os jovens a não formarem uma família, porque
privam-nos de possibilidades para o futuro. Mas
esta mesma cultura apresenta a outros tantas op-
ções que também eles são dissuadidos de formar
uma família ».14 Nalguns países, muitos jovens
«são frequentemente levados a adiar o matrimó-
nio por problemas de tipo económico, laboral ou
de estudo. Às vezes também por outros motivos,
tais como a influência das ideologias que desvalorizam
o matrimónio e a família, a experiência
do fracasso de outros casais a que eles não se
querem expor, o medo de algo que consideram
demasiado grande e sagrado, as oportunidades
sociais e os benefícios económicos derivados da
14 Francisco, Discurso ao Congresso dos Estados Unidos da
América (24 de Setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 01/X/2015), 9.
33
convivência, uma concepção puramente emotiva
e romântica do amor, o medo de perder a liberdade
e a autonomia, a rejeição de tudo o que
possa ser concebido como institucional e burocrático».15
Precisamos de encontrar as palavras,
as motivações e os testemunhos que nos ajudem
a tocar as cordas mais íntimas dos jovens, onde
são mais capazes de generosidade, de compromisso,
de amor e até mesmo de heroísmo, para
convidá-los a aceitar, com entusiasmo e coragem,
o desafio de matrimónio.
41. Os Padres sinodais aludiram a certas «tendências
culturais que parecem impor uma afetividade
sem qualquer limitação, (…) uma afetividade
narcisista, instável e mutável que não ajuda os
sujeitos a atingir uma maior maturidade ». Preocupa
a «difusão da pornografia e da comercialização
do corpo, favorecida, entre outras coisas,
por um uso distorcido da internet» e pela «situação
das pessoas que são obrigadas a praticar
a prostituição». Neste contexto, por vezes os
casais sentem-se inseguros, indecisos, custando-
-lhes a encontrar as formas para crescer. Muitos
são aqueles que tendem a ficar nos estádios primários
da vida emocional e sexual. A crise do
casal destabiliza a família e pode chegar, através
das separações e dos divórcios, a ter sérias consequências
para os adultos, os filhos e a sociedade,
enfraquecendo o indivíduo e os laços sociais».16
15 Relatio Finalis 2015, 29. 16 Relatio Synodi 2014, 10.
34
As crises conjugais são « enfrentadas muitas vezes
de modo apressado e sem a coragem da paciência,
da averiguação, do perdão recíproco, da
reconciliação e até do sacrifício. Deste modo os
falimentos dão origem a novas relações, novos
casais, novas uniões e novos casamentos, criando
situações familiares complexas e problemáticas
para a opção cristã ».17
42. «A própria queda demográfica, causada por
uma mentalidade anti natalista e promovida pelas
políticas mundiais de saúde reprodutiva, não só
determina uma situação em que a sucessão das
gerações deixa de estar garantida, mas corre-se
o risco de levar, com o tempo, a um empobrecimento
económico e a uma perda de esperança no
futuro. O avanço das biotecnologias também teve
um forte impacto sobre a natalidade ».18 Podem
juntar-se outros factores, como « a industrializa-
ção, a revolução sexual, o temor da superpopula-
ção, os problemas económicos (...). A sociedade
de consumo também pode dissuadir as pessoas
de ter filhos, só para manter a sua liberdade e estilo
de vida ».19 É verdade que a consciência recta
dos esposos, quando foram muito generosos na
transmissão da vida, pode orientá-los para a decisão
de limitar o número dos filhos por razões
17 III Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos
Bispos, Mensagem (18 de Outubro de 2014): L’Osservatore Romano
(ed. semanal portuguesa de 23/X/2014), 7. 18 Relatio Synodi 2014, 10. 19 Relatio Finalis 2015, 7.
35
suficientemente sérias; e também «por amor desta
dignidade da consciência, a Igreja rejeita com
todas as suas forças as intervenções coercitivas
do Estado a favor da contracepção, da esterilização
e até mesmo do aborto».20 Estas medidas
são inaceitáveis mesmo em áreas com alta taxa
de natalidade, mas é notável que os políticos as
incentivem também nalguns países que sofrem
o drama duma taxa de natalidade muito baixa.
Como assinalaram os bispos da Coreia, isto é
« agir de forma contraditória e negligenciando o
próprio dever».21
43. O enfraquecimento da fé e da prática religiosa,
nalgumas sociedades, afecta as famílias,
deixando-as ainda mais sós com as suas dificuldades.
Os Padres disseram que « uma das maiores
pobrezas da cultura actual é a solidão, fruto da
ausência de Deus na vida das pessoas e da fragilidade
das relações. Há também uma sensação
geral de impotência face à realidade socioeconó-
mica que, muitas vezes, acaba por esmagar as famílias.
(...) Frequentemente as famílias sentem-se
abandonadas pelo desinteresse e a pouca atenção
das instituições. As consequências negativas sob
o ponto de vista da organização social são evidentes:
da crise demográfica às dificuldades educativas,
da fadiga em acolher a vida nascente ao
sentir a presença dos idosos como um peso, até à
20 Ibid., 63. 21 Conferência dos Bispos católicos da Coreia, Towards
a culture of life! (15 de Março de 2007).
36
difusão dum mal-estar afectivo que às vezes chega
à violência. O Estado tem a responsabilidade
de criar as condições legislativas e laborais para
garantir o futuro dos jovens e ajudá-los a realizar
o seu projecto de formar uma família ».22
44. A falta duma habitação digna ou adequada
leva muitas vezes a adiar a formalização duma
relação. É preciso lembrar que « a família tem
direito a uma habitação condigna, apropriada
para a vida familiar e proporcional ao número
dos seus membros, num ambiente fisicamente
sadio que proporcione os serviços básicos para a
vida da família e da comunidade ».23 Uma família
e uma casa são duas realidades que se reclamam
mutuamente. Este exemplo mostra que devemos
insistir nos direitos da família, e não apenas nos
direitos individuais. A família é um bem de que a
sociedade não pode prescindir, mas precisa de ser
protegida.24 A defesa destes direitos é « um apelo
profético a favor da instituição familiar, que deve
ser respeitada e defendida contra toda a agressão»,25
sobretudo no contexto actual em que habitualmente
ocupa pouco espaço nos projectos
políticos. As famílias têm, entre outros direitos,
o de «poder contar com uma adequada política
familiar por parte das autoridades públicas no
22 Relatio Synodi 2014, 6. 23 Pont. Conselho para a Família, Carta dos direitos da
família (22 de Outubro de 1983), 11.
24 Cf. Relatio Finalis 2015, 11-12. 25 Pont. Conselho para a Família, Carta dos direitos da
família (22 de Outubro de 1983), introdução.
37
campo jurídico, económico, social e fiscal».26 Às
vezes as angústias das famílias tornam-se dramáticas,
quando têm de enfrentar a doença de
um ente querido sem acesso a serviços de saúde
adequados, ou quando se prolonga o tempo sem
ter conseguido um emprego decente. «As coer-
ções económicas excluem o acesso das famílias à
educação, à vida cultural e à vida social activa. O
actual sistema económico produz várias formas
de exclusão social. As famílias sofrem de modo
particular com os problemas relativos ao trabalho.
As possibilidades para os jovens são poucas
e a oferta de trabalho é muito selectiva e precária.
As jornadas de trabalho são longas e, muitas vezes,
agravadas pelo tempo gasto na deslocação.
Isto não ajuda os esposos a encontrar-se entre
si e com os filhos, para alimentar diariamente as
suas relações».27
45. «Há muitos filhos nascidos fora do matrimónio,
especialmente nalguns países, e muitos
são os que, em seguida, crescem com um só dos
progenitores e num contexto familiar alargado
ou reconstituído. (...) Por outro lado, a explora-
ção sexual da infância constitui uma das realidades
mais escandalosas e perversas da sociedade
actual. Além disso, nas sociedades feridas pela
violência da guerra, do terrorismo ou da presen-
ça do crime organizado, acabam deterioradas as
situações familiares, sobretudo nas grandes me-
26 Ibid., 9. 27 Relatio Finalis 2015, 14.
38
trópoles, e nas suas periferias cresce o chamado
fenómeno dos meninos da rua ».28 O abuso sexual
das crianças torna-se ainda mais escandaloso,
quando se verifica em ambientes onde deveriam
ser protegidas, particularmente nas famílias
e nas comunidades e instituições cristãs.29
46. As migrações « constituem outro sinal dos
tempos, que deve ser enfrentado e compreendido
com todo o seu peso de consequências sobre a
vida familiar».30 O último Sínodo atribuiu grande
importância a esta problemática ao reconhecer
que, «sob modalidades diferentes, atinge popula-
ções inteiras em várias partes do mundo. A Igreja
desempenhou, neste campo, papel de primária
grandeza. A necessidade de manter e desenvolver
este testemunho evangélico (cf. Mt 25, 35) aparece
hoje mais urgente do que nunca. (...) A mobilidade
humana, que corresponde ao movimento
histórico natural dos povos, pode revelar-se uma
verdadeira riqueza tanto para a família que emigra
como para o país que a recebe. Caso diferente é a
migração forçada das famílias, em consequência
de situações de guerra, perseguição, pobreza, injustiça,
marcada pelas vicissitudes duma viagem
que, muitas vezes, põe em perigo a vida, traumatiza
as pessoas e destabiliza as famílias. O acompanhamento
dos migrantes exige uma pastoral
específica dirigida tanto às famílias que emigram
28 Relatio Synodi 2014, 8. 29 Cf. Relatio Finalis 2015, 78. 30 Relatio Synodi 2014, 8.
39
como aos membros dos núcleos familiares que
ficaram nos lugares de origem. Isto deve ser feito
respeitando as suas culturas, a formação religiosa
e humana da sua origem, a riqueza espiritual dos
seus ritos e tradições, inclusive através dum cuidado
pastoral específico. (...) As migrações revelam-se
particularmente dramáticas e devastadoras
tanto para as famílias como para as pessoas,
quando têm lugar à margem da legalidade e são
sustentadas por circuitos internacionais do tráfico
de pessoas. O mesmo se pode dizer quando
envolvem mulheres ou crianças não acompanhadas,
forçadas a estadias prolongadas nos locais de
passagem entre um país e outro, nos campos de
refugiados, onde não é possível iniciar um percurso
de integração. A pobreza extrema e outras
situações de desintegração induzem, por vezes,
as famílias até mesmo a vender os próprios filhos
para a prostituição ou o tráfico de órgãos».31
«As perseguições dos cristãos, bem como as de
minorias étnicas e religiosas, em várias partes do
mundo, especialmente no Médio Oriente, constituem
uma grande prova: não só para a Igreja mas
também para toda a comunidade internacional.
Devem ser apoiados todos os esforços para favorecer
a permanência das famílias e das comunidades
cristãs nas suas terras de origem».32
31 Relatio Finalis 2015, 23; cf. Mensagem para o Dia Mundial
do Emigrante e do Refugiado em 17 de Janeiro de 2016 (12 de Setembro
de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa
de 08/X/2015), 18-19. 32 Relatio Finalis 2015, 24.
40
47. Os Padres dedicaram especial atenção também
« às famílias das pessoas com deficiência, já
que tal deficiência, ao irromper na vida, gera um
desafio profundo e inesperado e transtorna os
equilíbrios, os desejos, as expectativas. (...) Merecem
grande admiração as famílias que aceitam,
com amor, a prova difícil dum filho deficiente.
Dão à Igreja e à sociedade um valioso testemunho
de fidelidade ao dom da vida. A família
poderá descobrir, juntamente com a comunidade
cristã, novos gestos e linguagens, formas de
compreensão e identidade, no percurso de acolhimento
e cuidado do mistério da fragilidade. As
pessoas com deficiência são, para a família, um
dom e uma oportunidade para crescer no amor,
na ajuda recíproca e na unidade. (...) A família
que aceita, com os olhos da fé, a presença de
pessoas com deficiência poderá reconhecer e garantir
a qualidade e o valor de cada vida, com as
suas necessidades, os seus direitos e as suas oportunidades.
Tal família providenciará assistência e
cuidados e promoverá companhia e carinho em
cada fase da vida ».33 Quero sublinhar que a aten-
ção prestada tanto aos migrantes como às pessoas
com deficiência é um sinal do Espírito. Pois
ambas as situações são paradigmáticas: põem especialmente
em questão o modo como se vive,
hoje, a lógica do acolhimento misericordioso e
da integração das pessoas frágeis.
33 Ibid., 21.
41
48. «A maioria das famílias respeita os idosos,
rodeia-os de carinho e considera-os uma bênção.
Um agradecimento especial deve ser dirigido às
associações e movimentos familiares que trabalham
a favor dos idosos, sob o aspecto espiritual e
social (...). Nas sociedades altamente industrializadas,
onde o seu número tende a aumentar enquanto
diminui a taxa de natalidade, os idosos correm o
risco de ser vistos como um peso. Por outro lado,
os cuidados que requerem muitas vezes põem a
dura prova os seus entes queridos».34 «A valoriza-
ção da fase conclusiva da vida é, hoje, ainda mais
necessária, porque na sociedade actual se tenta, de
todos os modos possíveis, ocultar o momento da
passagem. Às vezes, a fragilidade e dependência
do idoso são iniquamente exploradas por mero
proveito económico. Muitas famílias ensinam-nos
que é possível enfrentar os últimos anos da vida,
valorizando o sentido de realização e integração
de toda a existência no mistério pascal. Um grande
número de idosos é acolhido em estruturas da
Igreja, onde podem viver num ambiente sereno e
familiar a nível material e espiritual. A eutanásia e
o suicídio assistido são graves ameaças para as famílias,
em todo o mundo. A sua prática é legal em
muitos Estados. A Igreja, ao mesmo tempo que se
opõe firmemente a tais práticas, sente o dever de
ajudar as famílias que cuidam dos seus membros
idosos e doentes».35
34 Ibid., 17. 35 Ibid., 20.
42
49. Quero assinalar a situação das famílias caí-
das na miséria, penalizadas de tantas maneiras,
onde as limitações da vida se fazem sentir de forma
lancinante. Se todos têm dificuldades, estas,
numa casa muito pobre, tornam-se mais duras.36
Por exemplo, se uma mulher deve criar o seu filho
sozinha, devido a uma separação ou por outras
causas, e tem de ir trabalhar sem a possibilidade
de o deixar com outra pessoa, o filho cresce
num abandono que o expõe a todos os tipos de
risco e fica comprometido o seu amadurecimento
pessoal. Nas situações difíceis em que vivem
as pessoas mais necessitadas, a Igreja deve pôr
um cuidado especial em compreender, consolar
e integrar, evitando impor-lhes um conjunto de
normas como se fossem uma rocha, tendo como
resultado fazê-las sentir-se julgadas e abandonadas
precisamente por aquela Mãe que é chamada
a levar-lhes a misericórdia de Deus. Assim, em
vez de oferecer a força sanadora da graça e da
luz do Evangelho, alguns querem « doutrinar»
o Evangelho, transformá-lo em «pedras mortas
para as jogar contra os outros».37
Alguns desafios
50. As respostas recebidas nas duas consulta-
ções, efectuadas no caminho sinodal, mencio-
36 Cf. ibid., 15. 37 Francisco, Discurso no encerramento da XIV Assembleia
Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (24 de Outubro de 2015):
L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 29/X/2015), 9.
43
naram as mais diversas situações que colocam
novos desafios. Além das situações já indicadas,
muitos referiram-se à função educativa, que acaba
dificultada porque, entre outras causas, os
pais chegam a casa cansados e sem vontade de
conversar; em muitas famílias, já não há sequer
o hábito de comerem juntos, e cresce uma grande
variedade de ofertas de distracção, para além
da dependência da televisão. Isto torna difícil
a transmissão da fé de pais para filhos. Outros
assinalaram que as famílias habitualmente padecem
duma enorme ansiedade; parece haver mais
preocupação por prevenir problemas futuros do
que por compartilhar o presente. Isto, que é uma
questão cultural, vê-se agravado por um futuro
profissional incerto, pela insegurança económica
ou pelo medo quanto ao futuro dos filhos.
51. Mencionou-se também a toxicodependência
como um dos flagelos do nosso tempo que
faz sofrer muitas famílias e, não raro, acaba por
destruí-las. Algo semelhante acontece com o alcoolismo,
os jogos de azar e outras dependências.
A família poderia ser o lugar da prevenção
e das boas regras, mas a sociedade e a política
não chegam a perceber que uma família em risco
«perde a capacidade de reacção para ajudar os
seus membros (...). Observamos as graves consequências
desta ruptura em famílias destruídas,
filhos desenraizados, idosos abandonados, crian-
ças órfãs de pais vivos, adolescentes e jovens de-
44
sorientados e sem regras».38 Como apontaram os
bispos do México, há tristes situações de violência
familiar que são terreno fértil para novas formas
de agressividade social, porque « as relações
familiares explicam também a predisposição para
uma personalidade violenta. As famílias que influem
nesta direcção são aquelas em que há uma
comunicação deficiente; aquelas em que predominam
as atitudes defensivas e os seus membros
não se apoiam entre si; onde não há actividades
familiares que favoreçam a participação; as famí-
lias onde as relações entre os pais costumam ser
conflituosas e violentas, e as relações pais-filhos
se caracterizam por atitudes hostis. A violência
no seio da família é escola de ressentimento e
ódio nas relações humanas básicas».39
52. Ninguém pode pensar que o enfraquecimento
da família como sociedade natural fundada
no matrimónio seja algo que beneficia a
sociedade. Antes pelo contrário, prejudica o amadurecimento
das pessoas, o cultivo dos valores
comunitários e o desenvolvimento ético das cidades
e das aldeias. Já não se adverte claramente
que só a união exclusiva e indissolúvel entre um
homem e uma mulher realiza uma função social
plena, por ser um compromisso estável e tornar
possível a fecundidade. Devemos reconhecer
38 Conferência Episcopal Argentina, Navega mar adentro
(31 de Maio de 2003), 42. 39 Conferência Episcopal Mexicana, Que en Cristo Nuestra
Paz México tenga vida digna (15 de Fevereiro de 2009), 67.
45
a grande variedade de situações familiares que
podem fornecer uma certa regra de vida, mas
as uniões de facto ou entre pessoas do mesmo
sexo, por exemplo, não podem ser simplistamente
equiparadas ao matrimónio. Nenhuma união
precária ou fechada à transmissão da vida garante
o futuro da sociedade. E, todavia, quem se preocupa
hoje com fortalecer os cônjuges, ajudá-los
a superar os riscos que os ameaçam, acompanhá-
-los no seu papel educativo, incentivar a estabilidade
da união conjugal?
53. «Nalgumas sociedades, vigora ainda a prá-
tica da poligamia; noutros contextos, permanece
a prática dos matrimónios combinados. (...) Em
muitos contextos, e não apenas ocidentais, está a
difundir-se largamente a prática da convivência
que precede o matrimónio e também a prática
de convivências não orientadas para assumir a
forma dum vínculo institucional».40 Em vários
países, a legislação facilita o avanço de várias alternativas,
de modo que um matrimónio com as
características de exclusividade, indissolubilidade
e abertura à vida acaba por aparecer como mais
uma proposta antiquada entre muitas outras.
Avança, em muitos países, uma desconstrução
jurídica da família, que tende a adoptar formas
baseadas quase exclusivamente no paradigma da
autonomia da vontade. Embora seja legítimo e
justo rejeitar velhas formas de família «tradicio-
40 Relatio Finalis 2015, 25.
46
nal», caracterizadas pelo autoritarismo e inclusive
pela violência, todavia isso não deveria levar
ao desprezo do matrimónio, mas à redescoberta
do seu verdadeiro sentido e à sua renovação. A
força da família «reside essencialmente na sua
capacidade de amar e ensinar a amar. Por muito
ferida que possa estar uma família, ela pode sempre
crescer a partir do amor».41
54. Neste relance sobre a realidade, desejo salientar
que, apesar das melhorias notáveis registadas
no reconhecimento dos direitos da mulher e
na sua participação no espaço público, ainda há
muito que avançar nalguns países. Não se acabou
ainda de erradicar costumes inaceitáveis; destaco
a violência vergonhosa que, às vezes, se exerce
sobre as mulheres, os maus-tratos familiares e
várias formas de escravidão, que não constituem
um sinal de força masculina, mas uma covarde
degradação. A violência verbal, física e sexual,
perpetrada contra as mulheres nalguns casais,
contradiz a própria natureza da união conjugal.
Penso na grave mutilação genital da mulher nalgumas
culturas, mas também na desigualdade de
acesso a postos de trabalho dignos e aos lugares
onde as decisões são tomadas. A história carrega
os vestígios dos excessos das culturas patriarcais,
onde a mulher era considerada um ser de segunda
classe, mas recordemos também o « aluguer de
ventres» ou « a instrumentalização e comerciali-
41 Ibid., 10.
47
zação do corpo feminino na cultura mediática
contemporânea ».42 Alguns consideram que muitos
dos problemas actuais ocorreram a partir da
emancipação da mulher. Mas este argumento não
é válido, « é falso, não é verdade! Trata-se de uma
forma de machismo».43 A idêntica dignidade entre
o homem e a mulher impele a alegrar-nos com
a superação de velhas formas de discriminação e
o desenvolvimento dum estilo de reciprocidade
dentro das famílias. Se aparecem formas de feminismo
que não podemos considerar adequadas,
de igual modo admiramos a obra do Espírito no
reconhecimento mais claro da dignidade da mulher
e dos seus direitos.
55. O homem « desempenha um papel igualmente
decisivo na vida da família, especialmente
na protecção e sustentamento da esposa e dos
filhos. (...) Muitos homens estão conscientes da
importância do seu papel na família e vivem-no
com as qualidades peculiares da índole masculina.
A ausência do pai penaliza gravemente a vida
familiar, a educação dos filhos e a sua integração
na sociedade. Tal ausência pode ser física, afectiva,
cognitiva e espiritual. Esta carência priva os
filhos dum modelo adequado do comportamento
paterno».44
42 Francisco, Catequese (22 de Abril de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 23/IV/2015), 16.
43 Idem, Catequese (29 de Abril de 2015): L’Osservatore Romano
(ed. semanal portuguesa de 30/IV/2015), 16.
44 Relatio Finalis 2015, 28.
48
56. Outro desafio surge de várias formas duma
ideologia genericamente chamada gender, que
«nega a diferença e a reciprocidade natural de
homem e mulher. Prevê uma sociedade sem diferenças
de sexo, e esvazia a base antropológica da
família. Esta ideologia leva a projectos educativos
e directrizes legislativas que promovem uma
identidade pessoal e uma intimidade afectiva radicalmente
desvinculadas da diversidade biológica
entre homem e mulher. A identidade humana
é determinada por uma opção individualista, que
também muda com o tempo».45 Preocupa o facto
de algumas ideologias deste tipo, que pretendem
dar resposta a certas aspirações por vezes compreensíveis,
procurarem impor-se como pensamento
único que determina até mesmo a educação
das crianças. É preciso não esquecer que
«sexo biológico (sex) e função sociocultural do
sexo (gender) podem-se distinguir, mas não separar».46
Por outro lado, « a revolução biotecnoló-
gica no campo da procriação humana introduziu
a possibilidade de manipular o acto generativo,
tornando-o independente da relação sexual entre
homem e mulher. Assim, a vida humana bem
como a paternidade e a maternidade tornaram-se
realidades componíveis e decomponíveis, sujeitas
de modo prevalecente aos desejos dos indivíduos
ou dos casais».47 Uma coisa é compreender a fra-
45 Ibid., 8. 46 Ibid., 58. 47 Ibid., 33.
49
gilidade humana ou a complexidade da vida, e
outra é aceitar ideologias que pretendem dividir
em dois os aspectos inseparáveis da realidade.
Não caiamos no pecado de pretender substituir-nos
ao Criador. Somos criaturas, não somos
omnipotentes. A criação precede-nos e deve ser
recebida como um dom. Ao mesmo tempo somos
chamados a guardar a nossa humanidade, e
isto significa, antes de tudo, aceitá-la e respeitá-la
como ela foi criada.
57. Dou graças a Deus porque muitas famílias,
que estão bem longe de se considerarem perfeitas,
vivem no amor, realizam a sua vocação e
continuam para diante embora caiam muitas vezes
ao longo do caminho. Partindo das reflexões
sinodais, não se chega a um estereótipo da família
ideal, mas um interpelante mosaico formado por
muitas realidades diferentes, cheias de alegrias,
dramas e sonhos. As realidades que nos preocupam,
são desafios. Não caiamos na armadilha de
nos consumirmos em lamentações autodefensivas,
em vez de suscitar uma criatividade missionária.
Em todas as situações, « a Igreja sente a
necessidade de dizer uma palavra de verdade e de
esperança. (...) Os grandes valores do matrimó-
nio e da família cristã correspondem à busca que
atravessa a existência humana ».48 Se constatamos
muitas dificuldades, estas são – como disseram
os bispos da Colômbia – um apelo para «libertar
48 Relatio Synodi 2014, 11.
50
em nós as energias da esperança, traduzindo-as
em sonhos proféticos, acções transformadoras e
imaginação da caridade ».49
49 Conferência Episcopal da Colômbia, A tiempos difí-
ciles, colombianos nuevos (13 de Fevereiro de 2003), 3.
51
CAPÍTULO III
O OLHAR FIXO EM JESUS:
A VOCAÇÃO DA FAMÍLIA
58. Diante das famílias e no meio delas, deve
ressoar sempre de novo o primeiro anúncio, que
é o «mais belo, mais importante, mais atraente
e, ao mesmo tempo, mais necessário»50 e « deve
ocupar o centro da atividade evangelizadora ».51 É
o anúncio principal, « aquele que sempre se tem
de voltar a ouvir de diferentes maneiras e aquele
que sempre se tem de voltar a anunciar, duma
forma ou doutra ».52 Porque «nada há de mais
sólido, mais profundo, mais seguro, mais consistente
e mais sábio que esse anúncio» e «toda a
formação cristã é, primariamente, o aprofundamento
do querigma ».53
59. O nosso ensinamento sobre o matrimónio
e a família não pode deixar de se inspirar e transfigurar
à luz deste anúncio de amor e ternura, se
não quiser tornar-se mera defesa duma doutrina
fria e sem vida. Com efeito, o próprio mistério
da família cristã só se pode compreender plena-
50 Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro
de 2013), 35: AAS 105 (2013), 1034. 51 Ibid., 164: o. c., 1088. 52 Ibidem. 53 Ibid., 165: o. c., 1089.
52
mente à luz do amor infinito do Pai, que se manifestou
em Cristo entregue até ao fim e vivo entre
nós. Por isso, quero contemplar Cristo vivo que
está presente em tantas histórias de amor e invocar
o fogo do Espírito sobre todas as famílias do
mundo.
60. Dentro deste quadro, o presente capítulo
recolhe uma síntese da doutrina da Igreja sobre
o matrimónio e a família. Também aqui citarei
várias contribuições prestadas pelos Padres sinodais
nas suas considerações acerca da luz que
a fé nos oferece. Eles partiram do olhar de Jesus,
dizendo que Ele «olhou para as mulheres e
os homens que encontrou com amor e ternura,
acompanhando os seus passos com verdade, paciência
e misericórdia, ao anunciar as exigências
do Reino de Deus».54 De igual modo nos acompanha,
hoje, o Senhor no nosso compromisso de
viver e transmitir o Evangelho da família.
Jesus recupera e realiza plenamente
o projecto divino
61. Contrariamente àqueles que proibiam o matrimónio,
o Novo Testamento ensina que «tudo
o que Deus criou é bom e nada deve ser rejeitado»
(1 Tim 4, 4). O matrimónio é um «dom» do
Senhor (cf. 1 Cor 7, 7). Ao mesmo tempo que se
dá esta avaliação positiva, acentua-se fortemente
a obrigação de cuidar deste dom divino: « Seja
54 Relatio Synodi 2014, 12.
53
o matrimónio honrado por todos e imaculado o
leito conjugal» (Heb 13, 4). Este dom de Deus
inclui a sexualidade: «Não vos recuseis um ao
outro» (1 Cor 7, 5).
62. Os Padres sinodais lembraram que Jesus,
« ao referir-Se ao desígnio primordial sobre o
casal humano, reafirma a união indissolúvel entre
o homem e a mulher, mesmo admitindo que,
“por causa da dureza do vosso coração, Moisés
permitiu que repudiásseis as vossas mulheres;
mas, ao princípio, não foi assim” (Mt 19, 8). A
indissolubilidade do matrimónio (“o que Deus
uniu não o separe o homem”: Mt 19, 6) não se
deve entender primariamente como “jugo” imposto
aos homens, mas como um “dom” concedido
às pessoas unidas em matrimónio. (...) A
condescendência divina acompanha sempre o
caminho humano, com a sua graça, cura e transforma
o coração endurecido, orientando-o para
o seu princípio, através do caminho da cruz. Nos
Evangelhos, sobressai claramente a postura de
Jesus, que (...) anunciou a mensagem relativa ao
significado do matrimónio como plenitude da
revelação que recupera o projecto originário de
Deus (cf. Mt 19, 3)».55
63. «Jesus, que reconciliou em Si todas as coisas,
voltou a levar o matrimónio e a família à sua
forma original (cf. Mc 10, 1-12). A família e o
55 Ibid., 14.
54
matrimónio foram redimidos por Cristo (cf. Ef
5, 21-32), restaurados à imagem da Santíssima
Trindade, mistério donde brota todo o amor verdadeiro.
A aliança esponsal, inaugurada na cria-
ção e revelada na história da salvação, recebe a
revelação plena do seu significado em Cristo e na
sua Igreja. O matrimónio e a família recebem de
Cristo, através da Igreja, a graça necessária para
testemunhar o amor de Deus e viver a vida de
comunhão. O Evangelho da família atravessa a
história do mundo desde a criação do homem à
imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26-27)
até à realização do mistério da Aliança em Cristo
no fim dos séculos com as núpcias do Cordeiro
(cf. Ap 19, 9)».56
64. «A postura de Jesus é paradigmática para a
Igreja (...). Ele inaugurou a sua vida pública com
o sinal de Caná, realizado num banquete de núpcias
(cf. Jo 2, 1-11). (…) Compartilhou momentos
diários de amizade com a família de Lázaro
e suas irmãs (cf. Lc 10, 38) e com a família de
Pedro (cf. Mt 8, 14). Escutou o pranto dos pais
pelos seus filhos, restituindo-os à vida (cf. Mc 5,
41; Lc 7, 14-15) e mostrando assim o verdadeiro
significado da misericórdia, a qual implica a
restauração da Aliança (cf. João Paulo II, Dives
in misericordia, 4). Vê-se isto claramente nos encontros
com a mulher samaritana (cf. Jo 4, 1-30)
e com a adúltera (cf. Jo 8, 1-11), nos quais a noção
56 Ibid., 16.
55
do pecado é avivada perante o amor gratuito de
Jesus».57
65. A encarnação do Verbo numa família humana,
em Nazaré, comove com a sua novidade a
história do mundo. Precisamos de mergulhar no
mistério do nascimento de Jesus, no sim de Maria
ao anúncio do anjo, quando foi concebida a Palavra
no seu seio; e ainda no sim de José, que deu
o nome a Jesus e cuidou de Maria; na festa dos
pastores no presépio; na adoração dos Magos;
na fuga para o Egipto, em que Jesus participou
no sofrimento do seu povo exilado, perseguido
e humilhado; na devota espera de Zacarias e na
alegria que acompanhou o nascimento de João
Baptista; na promessa que Simeão e Ana viram
cumprida no templo; na admiração dos doutores
da lei ao escutarem a sabedoria de Jesus adolescente.
E, em seguida, penetrar nos trinta longos
anos em que Jesus ganhava o pão trabalhando
com suas mãos, sussurrando a oração e a tradição
crente do seu povo e formando-Se na fé
dos seus pais, até fazê-la frutificar no mistério do
Reino. Este é o mistério do Natal e o segredo de
Nazaré, cheio de perfume a família! É o mistério
que tanto fascinou Francisco de Assis, Teresa do
Menino Jesus e Charles de Foucauld, e do qual
bebem também as famílias cristãs para renovar a
sua esperança e alegria.
57 Relatio Finalis 2015, 41.
56
66. «A aliança de amor e fidelidade, vivida pela
Sagrada Família de Nazaré, ilumina o princípio
que dá forma a cada família e a torna capaz de
enfrentar melhor as vicissitudes da vida e da história.
Sobre este fundamento, cada família, mesmo
na sua fragilidade, pode tornar-se uma luz na
escuridão do mundo. “Aqui se aprende (…) uma
lição de vida familiar. Que Nazaré nos ensine o
que é a família, a sua comunhão de amor, a sua
austera e simples beleza, o seu carácter sagrado
e inviolável; aprendamos de Nazaré como é preciosa
e insubstituível a educação familiar e como
é fundamental e incomparável a sua função no
plano social” (Paulo VI, Alocução em Nazaré, 5 de
Janeiro de 1964)».58
A família nos documentos da Igreja
67. O Concílio Ecuménico Vaticano II ocupou-
-se, na Constituição pastoral Gaudium et spes, da
promoção da dignidade do matrimónio e da famí-
lia (cf. nn. 47-52). «Definiu o matrimónio como
comunidade de vida e amor (cf. n. 48), colocando
o amor no centro da família (...). O “verdadeiro
amor entre marido e mulher” (n. 49) implica
a mútua doação de si mesmo, inclui e integra a
dimensão sexual e a afectividade, correspondendo
ao desígnio divino (cf. nn. 48-49). Além disso
sublinha o enraizamento dos esposos em Cristo:
Cristo Senhor “vem ao encontro dos esposos cristãos
com o sacramento do matrimónio” (n. 48) e
58 Ibid., 38.
57
permanece com eles. Na encarnação, Ele assume
o amor humano, purifica-o, leva-o à plenitude e dá
aos esposos, com o seu Espírito, a capacidade de
o viver, impregnando toda a sua vida com a fé, a
esperança e a caridade. Assim, os cônjuges são de
certo modo consagrados e, por meio duma graça
própria, edificam o Corpo de Cristo e constituem
uma igreja doméstica (cf. Lumen gentium, 11), de tal
modo que a Igreja, para compreender plenamente
o seu mistério, olha para a família cristã, que o manifesta
de forma genuína ».59
68. Em seguida, «na esteira do Concílio Vaticano
II, o Beato Paulo VI aprofundou a doutrina
sobre o matrimónio e a família. Em particular,
com a Encíclica Humanae vitae, destacou o vínculo
intrínseco entre amor conjugal e procriação: “o
amor conjugal requer nos esposos uma consciência
da sua missão de ‘paternidade responsável’,
sobre a qual hoje tanto se insiste, e justificadamente,
e que deve também ela ser compreendida
com exactidão (...). O exercício responsável da
paternidade implica, portanto, que os cônjuges
reconheçam plenamente os próprios deveres
para com Deus, para consigo próprios, para com
a família e para com a sociedade, numa justa hierarquia
de valores” (n. 10). Na Exortação apostólica
Evangelii nuntiandi, Paulo VI salientou a relação
entre a família e a Igreja ».60
59 Relatio Synodi 2014, 17. 60 Relatio Finalis 2015, 43.
58
69. « São João Paulo II dedicou especial aten-
ção à família, através das suas catequeses sobre
o amor humano, a Carta às famílias Gratissimam
sane e sobretudo com a Exortação apostólica Familiaris
consortio. Nestes documentos, o Pontífice
definiu a família « caminho da Igreja »; ofereceu
uma visão de conjunto sobre a vocação ao amor
do homem e da mulher; propôs as linhas fundamentais
para a pastoral da família e para a presença
da família na sociedade. Concretamente, ao
tratar da caridade conjugal (cf. Familiaris consortio,
13), descreveu o modo como os cônjuges, no
seu amor mútuo, recebem o dom do Espírito de
Cristo e vivem a sua vocação à santidade ».61
70. «Bento XVI, na Encíclica Deus caritas est,
retomou o tema da verdade do amor entre o homem
e a mulher, que se vê iluminado plenamente
apenas à luz do amor de Cristo crucificado (cf.
n. 2). Sublinha que “o matrimónio baseado num
amor exclusivo e definitivo torna-se o ícone do
relacionamento de Deus com o seu povo e, vice-
-versa, o modo de Deus amar torna-se a medida
do amor humano” (n. 11). Além disso, na Encí-
clica Caritas in veritate, destaca a importância do
amor como princípio de vida na sociedade (cf. n.
44), lugar onde se aprende a experiência do bem
comum».62
61 Relatio Synodi 2014, 18. 62 Ibid., 19.
59
O sacramento do matrimónio
71. «A Sagrada Escritura e a Tradição abrem-
-nos o acesso a um conhecimento da Trindade
que Se revela com traços familiares. A família é
imagem de Deus, que (…) é comunhão de pessoas.
No baptismo, a voz do Pai chamou a Jesus
Filho amado; e, neste amor, podemos reconhecer
o Espírito Santo (cf. Mc 1, 10-11). Jesus, que tudo
reconciliou em Si mesmo e redimiu o homem do
pecado, não só voltou a levar o matrimónio e a
família à sua forma original, mas também elevou
o matrimónio a sinal sacramental do seu amor
pela Igreja (cf. Mt 19, 1-12; Mc 10, 1-12; Ef 5,
21-32). Na família humana, reunida em Cristo,
é restaurada a “imagem e semelhança” da Santíssima
Trindade (cf. Gn 1, 26), mistério donde
brota todo o amor verdadeiro. O matrimónio e
a família recebem de Cristo, através da Igreja, a
graça para testemunhar o Evangelho do amor de
Deus».63
72. O sacramento do matrimónio não é uma
convenção social, um rito vazio ou o mero sinal
externo dum compromisso. O sacramento é um
dom para a santificação e a salvação dos esposos,
porque « a sua pertença recíproca é a representa-
ção real, através do sinal sacramental, da mesma
relação de Cristo com a Igreja. Os esposos são,
portanto, para a Igreja a lembrança permanente
daquilo que aconteceu na cruz; são um para o
63 Relatio Finalis 2015, 38.
60
outro, e para os filhos, testemunhas da salvação,
da qual o sacramento os faz participar».64 O matrimónio
é uma vocação, sendo uma resposta à
chamada específica para viver o amor conjugal
como sinal imperfeito do amor entre Cristo e a
Igreja. Por isso, a decisão de se casar e formar
uma família deve ser fruto dum discernimento
vocacional.
73. «O dom recíproco constitutivo do matrimónio
sacramental está enraizado na graça do
baptismo, que estabelece a aliança fundamental
de cada pessoa com Cristo na Igreja. Na mú-
tua recepção e com a graça de Cristo, os noivos
prometem-se entrega total, fidelidade e abertura
à vida, e também reconhecem como elementos
constitutivos do matrimónio os dons que Deus
lhes oferece, tomando a sério o seu mútuo compromisso,
em nome de Deus e perante a Igreja.
Ora, na fé, é possível assumir os bens do matrimónio
como compromissos que se podem
cumprir melhor com a ajuda da graça do sacramento.
(...) Portanto, o olhar da Igreja volta-se
para os esposos como o coração da família inteira,
que, por sua vez, levanta o seu olhar para
Jesus».65 O sacramento não é uma « coisa » nem
uma «força », mas o próprio Cristo, na realidade,
« vem ao encontro dos esposos cristãos com o
sacramento do matrimónio. Fica com eles, dá-
64 João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro
de 1981), 13: AAS 74 (1982), 94. 65 Relatio Synodi 2014, 21.
61
-lhes a coragem de O seguirem, tomando sobre
si a sua cruz, de se levantarem depois das quedas,
de se perdoarem mutuamente, de levarem o
fardo um do outro».66 O matrimónio cristão é
um sinal que não só indica quanto Cristo amou a
sua Igreja na Aliança selada na Cruz, mas torna
presente esse amor na comunhão dos esposos.
Quando se unem numa só carne, representam
o desposório do Filho de Deus com a natureza
humana. Por isso, «nas alegrias do seu amor e da
sua vida familiar, Ele dá-lhes, já neste mundo, um
antegozo do festim das núpcias do Cordeiro».67
Embora « a analogia entre o casal marido-esposa
e Cristo-Igreja » seja uma « analogia imperfeita »,68
convida a invocar o Senhor para que derrame o
seu amor nas limitações das relações conjugais.
74. Vivida de modo humano e santificada pelo
sacramento, a união sexual é, por sua vez, caminho
de crescimento na vida da graça para os esposos.
É o «mistério nupcial».69 O valor da união
dos corpos está expresso nas palavras do consentimento,
pelas quais se acolheram e doaram
reciprocamente para partilhar a vida toda. Estas
palavras conferem um significado à sexualidade,
libertando-a de qualquer ambiguidade. Mas, na
realidade, toda a vida em comum dos esposos,
66 Catecismo da Igreja Católica, 1642. 67 Ibidem. 68 Francisco, Catequese (6 de Maio de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 7/V/2015), 20.
69 Leão Magno, Epistula Rustico narbonensi episcopo, inquis.
IV: PL 54, 1205A; cf. Incmaro de Reims, Epist. 22: PL 126, 142.
62
toda a rede de relações que hão-de tecer entre
si, com os seus filhos e com o mundo, estará impregnada
e robustecida pela graça do sacramento
que brota do mistério da Encarnação e da Páscoa,
onde Deus exprimiu todo o seu amor pela
humanidade e Se uniu intimamente com ela. Os
esposos nunca estarão sós, com as suas próprias
forças, a enfrentar os desafios que surgem. São
chamados a responder ao dom de Deus com o
seu esforço, a sua criatividade, a sua perseverança
e a sua luta diária, mas sempre poderão invocar
o Espírito Santo que consagrou a sua união, para
que a graça recebida se manifeste sem cessar em
cada nova situação.
75. No sacramento do matrimónio, segundo
a tradição latina da Igreja, os ministros são o
homem e a mulher que se casam,70 os quais, ao
manifestar o seu consentimento e expressá-lo na
sua entrega corpórea, recebem um grande dom.
O seu consentimento e a união dos seus corpos
são os instrumentos da acção divina que os torna
uma só carne. No baptismo, ficou consagrada a
sua capacidade de se unir em matrimónio como
ministros do Senhor, para responder à vocação
de Deus. Por isso, quando dois cônjuges não-
-cristãos recebem o baptismo, não é necessário
renovar a promessa nupcial sendo suficiente que
não a rejeitem, pois, pelo baptismo que recebem,
70 Cf. Pio XII, Carta enc. Mystici Corporis Christi (29 de Junho
de 1943): AAS 35 (1943), 202: «Matrimonio enim quo coniuges
sibi invicem sunt ministri gratiae…».
63
essa união torna-se automaticamente sacramental.
O próprio direito canónico reconhece a validade
de alguns matrimónios que se celebram sem
um ministro ordenado.71 É que a ordem natural
foi assumida pela redenção de Jesus Cristo, pelo
que, « entre baptizados, não pode haver contrato
matrimonial válido que não seja, pelo mesmo
facto, sacramento».72 A Igreja pode exigir que o
acto seja público, a presença de testemunhas e
outras condições que foram variando ao longo
da história, mas isto não tira, aos dois esposos,
o seu carácter de ministros do sacramento, nem
diminui a centralidade do consentimento do homem
e da mulher, que é aquilo que, de por si, estabelece
o vínculo sacramental. Em todo o caso,
precisamos de reflectir mais sobre a acção divina
no rito nupcial, que aparece muito evidenciada
nas Igrejas Orientais ao ressaltarem a importância
da bênção sobre os contraentes como sinal
do dom do Espírito.
Sementes do Verbo e situações imperfeitas
76. «O Evangelho da família nutre também as
sementes ainda à espera de desenvolver-se e deve
cuidar das árvores que perderam vitalidade e necessitam
que não as transcurem»,73 de modo que,
partindo do dom de Cristo no sacramento, «se-
71 Cf. Código de Direito Canónico, cc. 1116; 1161-1165; Código
dos Cânones das Igrejas Orientais, 832; 848-852. 72 Código de Direito Canónico, c. 1055-§ 2. 73 Relatio Synodi 2014, 23.
64
jam conduzidas pacientemente mais além, chegando
a um conhecimento mais rico e uma integração
mais plena deste mistério na sua vida ».74
77. Assumindo o ensinamento bíblico de que
tudo foi criado por Cristo e para Cristo (cf. Col 1,
16), os Padres sinodais lembraram que « a ordem
da redenção ilumina e realiza a da criação. Assim,
o matrimónio natural compreende-se plenamente
à luz da sua realização sacramental: só fixando
o olhar em Cristo é que se conhece cabalmente a
verdade das relações humanas. “Na realidade, o
mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado
se esclarece verdadeiramente. (...) Cristo,
novo Adão, na própria revelação do mistério do
Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e
descobre-lhe a sua vocação sublime” (Gaudium et
spes, 22). Em particular é oportuno compreender,
em chave cristocêntrica, (...) o bem dos cônjuges
(bonum coniugum)»,75 que inclui a unidade, a abertura
à vida, a fidelidade, a indissolubilidade e, no
matrimónio cristão, também a ajuda mútua no
caminho que leva a uma amizade mais plena com
o Senhor. «O discernimento da presença das semina
Verbi nas outras culturas (cf. Ad gentes, 11)
pode-se aplicar também à realidade matrimonial
e familiar. Para além do verdadeiro matrimónio
natural, há elementos positivos também nas formas
matrimoniais doutras tradições religiosas»,76
74 João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro
de 1981), 9: AAS 74 (1982), 90. 75 Relatio Finalis 2015, 47. 76 Ibidem.
65
embora não faltem também as sombras. Podemos
dizer que «toda a pessoa que deseja formar,
neste mundo, uma família que ensine os filhos a
alegrar-se por cada acção que se proponha vencer
o mal – uma família que mostre que o Espí-
rito está vivo e operante – encontrará gratidão e
estima, independentemente do povo, região ou
religião a que pertença ».77
78. «O olhar de Cristo, cuja luz ilumina todo o
homem (cf. Jo 1, 9; Gaudium et spes, 22), inspira o
cuidado pastoral da Igreja pelos fiéis que simplesmente
vivem juntos, que contraíram matrimónio
apenas civil ou são divorciados que voltaram a
casar. Na perspectiva da pedagogia divina, a Igreja
olha com amor para aqueles que participam de
modo imperfeito na vida dela: com eles, invoca
a graça da conversão; encoraja-os a fazerem o
bem, a cuidarem com amor um do outro e colocarem-se
ao serviço da comunidade onde vivem
e trabalham. (...) Quando a união alcança uma estabilidade
notável por meio dum vínculo público
– e se reveste de afecto profundo, responsabilidade
pela prole, capacidade de superar as prova-
ções –, pode ser vista como uma oportunidade a
encaminhar para o sacramento do matrimónio,
sempre que este seja possível».78
77 Francisco, Homilia na Santa Missa de encerramento do
VIII Encontro Mundial das Famílias em Filadélfia (27 de Setembro
de 2015): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
08/X/2015), 4. 78 Relatio Finalis 2015, 53-54.
66
79. «Perante situações difíceis e famílias feridas,
é preciso lembrar sempre um princípio geral:
“Saibam os pastores que, por amor à verdade, estão
obrigados a discernir bem as situações” (Familiaris
consortio, 84). O grau de responsabilidade
não é igual em todos os casos, e podem existir
factores que limitem a capacidade de decisão.
Por isso, ao mesmo tempo que se exprime com
clareza a doutrina, há que evitar juízos que não
tenham em conta a complexidade das diferentes
situações, e é preciso estar atentos ao modo
como as pessoas vivem e sofrem por causa da
sua condição».79
A transmissão da vida e a educação dos filhos
80. O matrimónio é, em primeiro lugar, uma «íntima
comunidade da vida e do amor conjugal»,80
que constitui um bem para os próprios esposos;81
e a sexualidade «ordena-se para o amor conjugal
do homem e da mulher».82 Por isso, também «os
esposos a quem Deus não concedeu a graça de ter
filhos podem ter uma vida conjugal cheia de sentido,
humana e cristãmente falando».83 Contudo,
esta união está ordenada para a geração «por sua
79 Ibid., 51. 80 Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no
mundo contemporâneo Gaudium et spes, 48. 81 Cf. Código de Direito Canónico, c. 1055-§ 1: « ad bonum coniugum
atque ad prolis generationem et educationem ordinatum». 82 Catecismo da Igreja Católica, 2360. 83 Ibid., 1654.
67
própria natureza ».84 O bebé que chega «não vem
de fora juntar-se ao amor mútuo dos esposos; surge
no próprio coração deste dom mútuo, do qual
é fruto e complemento».85 Não aparece como o
final dum processo, mas está presente desde o iní-
cio do amor como uma característica essencial que
não pode ser negada sem mutilar o próprio amor.
Desde o início, o amor rejeita qualquer impulso
para se fechar em si mesmo, e abre-se a uma fecundidade
que o prolonga para além da sua pró-
pria existência. Assim nenhum acto sexual dos esposos
pode negar este significado,86 embora, por
várias razões, nem sempre possa efectivamente
gerar uma nova vida.
81. O filho pede para nascer, não de qualquer
maneira, mas deste amor, porque ele «não é uma
dívida, mas uma dádiva »,87 que é «o fruto do acto
específico do amor conjugal de seus pais».88 Com
efeito, «segundo a ordem da criação, o amor conjugal
entre um homem e uma mulher e a transmissão
da vida estão ordenados reciprocamente
(cf. Gn 1, 27-28). Deste modo, o Criador tornou
participantes da obra da sua criação o homem e a
84 Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no
mundo contemporâneo Gaudium et spes, 48. 85 Catecismo da Igreja Católica, 2366. 86 Cf. Paulo VI, Carta enc. Humanae vitae (25 de Julho de
1968), 11-12: AAS 60 (1968), 488-489. 87 Catecismo da Igreja Católica, 2378. 88 Congr. para a Doutrina da Fé, Instr. sobre o respeito
da vida humana nascente e a dignidade da procriação Donum
vitae (22 de Fevereiro de 1987), II, 8: AAS 80 (1988), 97.
68
mulher e, ao mesmo tempo, fê-los instrumentos
do seu amor, confiando à sua responsabilidade o
futuro da humanidade através da transmissão da
vida humana ».89
82. Os Padres sinodais referiram que «não é
difícil constatar como se está espalhando uma
mentalidade que reduz a geração da vida a uma
variável dos projectos individuais ou dos cônjuges».90
A doutrina da Igreja « ajuda a viver de maneira
harmoniosa e consciente a comunhão entre
os cônjuges, em todas as suas dimensões, juntamente
com a responsabilidade geradora. É preciso
redescobrir a mensagem da Encíclica Humanae
vitae de Paulo VI, que sublinha a necessidade de
respeitar a dignidade da pessoa na avaliação moral
dos métodos de regulação da natalidade. (...)
A escolha da adopção e do acolhimento exprime
uma fecundidade particular da experiência conjugal».91
Com particular gratidão, a Igreja « apoia
as famílias que acolhem, educam e rodeiam de
carinho os filhos deficientes».92
83. Neste contexto, não posso deixar de afirmar
que, se a família é o santuário da vida, o lugar
onde a vida é gerada e cuidada, constitui uma
contradição lancinante fazer dela o lugar onde
a vida é negada e destruída. É tão grande o va-
89 Relatio Finalis 2015, 63. 90 Relatio Synodi 2014, 57. 91 Ibid., 58. 92 Ibid., 57.
69
lor duma vida humana e inalienável o direito à
vida do bebé inocente que cresce no ventre de
sua mãe, que de modo nenhum se pode afirmar
como um direito sobre o próprio corpo a possibilidade
de tomar decisões sobre esta vida que
é fim em si mesma e nunca poderá ser objecto
de domínio doutro ser humano. A família protege
a vida em todas as fases da mesma, incluindo
o seu ocaso. Por isso, « a quem trabalha nas estruturas
sanitárias, lembra-se a obrigação moral
da objecção de consciência. Da mesma forma, a
Igreja não só sente a urgência de afirmar o direito
à morte natural, evitando o excesso terapêutico e
a eutanásia », mas também «rejeita firmemente a
pena de morte ».93
84. Os Padres quiseram sublinhar também que
« um dos desafios fundamentais que as famílias
enfrentam hoje é seguramente o desafio educativo,
que se tornou ainda mais difícil e complexo
por causa da realidade cultural actual e da grande
influência dos meios de comunicação».94 «A
Igreja desempenha um papel precioso de apoio
às famílias, a começar pela iniciação cristã, através
de comunidades acolhedoras».95 Mas parece-
-me muito importante lembrar que a educação
integral dos filhos é, simultaneamente, «dever
gravíssimo» e «direito primário» dos pais.
96 Não
93 Relatio Finalis 2015, 64. 94 Relatio Synodi 2014, 60. 95 Ibid., 61. 96 Código de Direito Canónico, c. 1136; cf. Código dos Cânones
das Igrejas Orientais, 627.
70
é apenas um encargo ou um peso, mas também
um direito essencial e insubstituível que estão
chamados a defender e que ninguém deveria pretender
tirar-lhes. O Estado oferece um serviço
educativo de maneira subsidiária, acompanhando
a função não-delegável dos pais, que têm direito
de poder escolher livremente o tipo de educação
– acessível e de qualidade – que querem dar aos
seus filhos, de acordo com as suas convicções. A
escola não substitui os pais; serve-lhes de complemento.
Este é um princípio básico: « qualquer
outro participante no processo educativo não
pode operar senão em nome dos pais, com o seu
consenso e, em certa media, até mesmo por seu
encargo».97 Infelizmente, « abriu-se uma fenda
entre família e sociedade, entre família e escola;
hoje, o pacto educativo quebrou-se; e, assim, a
aliança educativa da sociedade com a família entrou
em crise ».98
85. A Igreja é chamada a colaborar, com uma
acção pastoral adequada, para que os próprios
pais possam cumprir a sua missão educativa; e
sempre o deve fazer, ajudando-os a valorizar a
sua função específica e a reconhecer que quantos
recebem o sacramento do matrimónio são transformados
em verdadeiros ministros educativos,
pois, quando formam os seus filhos, edificam a
97 Pont. Conselho para a Família, Sexualidade humana:
verdade e significado (8 de Dezembro de 1995), 23. 98 Francisco, Catequese (20 de Maio de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 21/V/2015), 20.
71
Igreja99 e, fazendo-o, aceitam uma vocação que
Deus lhes propõe.100
A família e a Igreja
86. «Com íntima alegria e profunda consolação,
a Igreja olha para as famílias que permanecem fiéis
aos ensinamentos do Evangelho, agradecendo-
-lhes pelo testemunho que dão e encorajando-as.
Com efeito, graças a elas, torna-se credível a beleza
do matrimónio indissolúvel e fiel para sempre.
Na família, “como numa igreja doméstica” (Lumen
gentium, 11), amadurece a primeira experiência
eclesial da comunhão entre as pessoas, na qual,
por graça, se reflecte o mistério da Santíssima
Trindade. “É aqui que se aprende a tenacidade e
a alegria no trabalho, o amor fraterno, o perdão
generoso e sempre renovado, e sobretudo o culto
divino, pela oração e pelo oferecimento da pró-
pria vida” (Catecismo da Igreja Católica, 1657)».101
87. A Igreja é família de famílias, constantemente
enriquecida pela vida de todas as igrejas
domésticas. Assim, « em virtude do sacramento
do matrimónio, cada família torna-se, para todos
os efeitos, um bem para a Igreja. Nesta perspectiva,
será certamente um dom precioso, para o
99 Cf. João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de
Novembro de 1981), 38: AAS 74 (1982), 129. 100 Cf. Francisco, Discurso à Assembleia diocesana de Roma
(14 de Junho de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa
de 18/VI/2015), 6. 101 Relatio Synodi 2014, 23.
72
momento actual da Igreja, considerar também a
reciprocidade entre família e Igreja: a Igreja é um
bem para a família, a família é um bem para a
Igreja. A salvaguarda deste dom sacramental do
Senhor compete não só à família individual, mas
a toda a comunidade cristã ».102
88. O amor vivido nas famílias é uma força
permanente para a vida da Igreja. «O fim unitivo
do matrimónio é um apelo constante a crescer e
aprofundar este amor. Na sua união de amor, os
esposos experimentam a beleza da paternidade
e da maternidade; partilham projectos e fadigas,
anseios e preocupações; aprendem a cuidar um
do outro e a perdoar-se mutuamente. Neste amor,
celebram os seus momentos felizes e apoiam-se
nos episódios difíceis da história da sua vida. (...)
A beleza do dom recíproco e gratuito, a alegria
pela vida que nasce e a amorosa solicitude de todos
os seus membros, desde os pequeninos aos
idosos, são apenas alguns dos frutos que tornam
única e insubstituível a resposta à vocação da família
»,103 tanto para a Igreja como para a sociedade
inteira.
102 Relatio Finalis 2015, 52. 103 Ibid., 49-50.
73
CAPÍTULO IV
O AMOR NO MATRIMÓNIO
89. Tudo o que foi dito não é suficiente para
exprimir o Evangelho do matrimónio e da famí-
lia, se não nos detivermos particularmente a falar
do amor. Com efeito, não poderemos encorajar
um caminho de fidelidade e doação recíproca, se
não estimularmos o crescimento, a consolidação
e o aprofundamento do amor conjugal e familiar.
De facto, a graça do sacramento do matrimónio
destina-se, antes de mais nada, « a aperfeiçoar o
amor dos cônjuges».104 Também aqui é verdade
que, « ainda que eu tenha tão grande fé que transporte
montanhas, se não tiver amor, nada sou.
Ainda que eu distribua todos os meus bens e entregue
o meu corpo para ser queimado, se não
tiver amor de nada me vale » (1 Cor 13, 2-3). Mas
a palavra « amor», uma das mais usadas, muitas
vezes aparece desfigurada.105
O nosso amor quotidiano
90. No chamado hino à caridade escrito por
São Paulo, vemos algumas características do
amor verdadeiro:
104 Catecismo da Igreja Católica, 1641. 105 Cf. Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro
de 2005), 2: AAS 98 (2006), 218.
74
«O amor é paciente,
o amor é prestável;
não é invejoso,
não é arrogante nem orgulhoso,
nada faz de inconveniente,
não procura o seu próprio interesse,
não se irrita,
nem guarda ressentimento,
não se alegra com a injustiça,
mas rejubila com a verdade.
Tudo desculpa,
tudo crê,
tudo espera,
tudo suporta » (1 Cor 13, 4-7).
Isto pratica-se e cultiva-se na vida que os esposos
partilham dia-a-dia entre si e com os seus
filhos. Por isso, vale a pena deter-se a esclarecer o
significado das expressões deste texto, tendo em
vista uma aplicação à existência concreta de cada
família.
Paciência
91. A primeira palavra usada é «macrothymei». A
sua tradução não é simplesmente «suporta tudo»,
porque esta ideia é expressa no final do versículo
7. O sentido encontra-se na tradução grega
do texto do Antigo Testamento onde se diz que
Deus é «lento para a ira » (Nm 14, 18; cf. Ex 34,
6). Uma pessoa mostra-se paciente, quando não
se deixa levar pelos impulsos interiores e evita
agredir. A paciência é uma qualidade do Deus da
75
Aliança, que convida a imitá-Lo também na vida
familiar. Os textos onde Paulo usa este termo devem
ser lidos à luz do livro da Sabedoria (cf. 11,
23; 12, 2.15-18): ao mesmo tempo que se louva a
moderação de Deus para dar tempo ao arrependimento,
insiste-se no seu poder que se manifesta
quando actua com misericórdia. A paciência
de Deus é exercício da misericórdia de Deus para
com o pecador e manifesta o verdadeiro poder.
92. Ter paciência não é deixar que nos maltratem
permanentemente, nem tolerar agressões
físicas, ou permitir que nos tratem como objectos.
O problema surge quando exigimos que as
relações sejam idílicas, ou que as pessoas sejam
perfeitas, ou quando nos colocamos no centro
esperando que se cumpra unicamente a nossa
vontade. Então tudo nos impacienta, tudo nos
leva a reagir com agressividade. Se não cultivarmos
a paciência, sempre acharemos desculpas
para responder com ira, acabando por nos tornarmos
pessoas que não sabem conviver, anti-
-sociais incapazes de dominar os impulsos, e a família
tornar-se-á um campo de batalha. Por isso,
a Palavra de Deus exorta-nos: «Toda a espécie de
azedume, raiva, ira, gritaria e injúria desapareça
de vós, juntamente com toda a maldade » (Ef 4,
31). Esta paciência reforça-se quando reconheço
que o outro, assim como é, também tem direito
a viver comigo nesta terra. Não importa se é um
estorvo para mim, se altera os meus planos, se
me molesta com o seu modo de ser ou com as
76
suas ideias, se não é em tudo como eu esperava.
O amor possui sempre um sentido de profunda
compaixão, que leva a aceitar o outro como parte
deste mundo, mesmo quando age de modo diferente
daquilo que eu desejaria.
Atitude de serviço
93. Vem depois a palavra jrestéuetai – a única
vez que aparece em toda a Bíblia –, que deriva de
jrestós (pessoa boa, que mostra a sua bondade nas
acções). Mas pelo lugar onde está, ou seja, em
estrito paralelismo com o verbo anterior, é seu
complemento. Deste modo Paulo pretende esclarecer
que a «paciência », nomeada em primeiro
lugar, não é uma postura totalmente passiva, mas
há-de ser acompanhada por uma actividade, uma
reacção dinâmica e criativa perante os outros. Indica
que o amor beneficia e promove os outros.
Por isso, traduz-se como «prestável».
94. No conjunto do texto, vê-se que Paulo quer
insistir que o amor não é apenas um sentimento,
mas deve ser entendido no sentido que o verbo
« amar» tem em hebraico: «fazer o bem». Como
dizia Santo Inácio de Loyola, «o amor deve ser
colocado mais nas obras do que nas palavras».106
Assim poderá mostrar toda a sua fecundidade,
permitindo-nos experimentar a felicidade de dar,
a nobreza e grandeza de doar-se superabundan-
106 Exercícios espirituais, Contemplação para alcançar o
amor (230).
77
temente, sem calcular nem reclamar pagamento,
mas apenas pelo prazer de dar e servir.
Curando a inveja
95. Em seguida rejeita-se, como contrária ao
amor, uma atitude expressa como zeloi (ciúme ou
inveja). Significa que, no amor, não há lugar para
sentir desgosto pelo bem do outro (cf. Act 7, 9;
17, 5). A inveja é uma tristeza pelo bem alheio,
demostrando que não nos interessa a felicidade
dos outros, porque estamos concentrados exclusivamente
no nosso bem-estar. Enquanto o
amor nos faz sair de nós mesmos, a inveja leva a
centrar-nos em nós próprios. O verdadeiro amor
aprecia os sucessos alheios, não os sente como
uma ameaça, libertando-se do sabor amargo da
inveja. Aceita que cada um tenha dons distintos
e caminhos diferentes na vida; e, consequentemente,
procura descobrir o seu próprio caminho
para ser feliz, deixando que os outros encontrem
o deles.
96. Em última análise, trata-se de cumprir o
que pedem os dois últimos mandamentos da Lei
de Deus: «Não desejarás a casa do teu próximo.
Não desejarás a mulher do teu próximo, o seu
servo, a sua serva, o seu boi, o seu burro, e tudo o
que é do teu próximo» (Ex 20, 17). O amor leva-
-nos a uma apreciação sincera de cada ser humano,
reconhecendo o seu direito à felicidade. Amo
aquela pessoa, vejo-a com o olhar de Deus Pai,
que nos dá tudo «para nosso usufruto» (1 Tim
78
6, 17), e consequentemente aceito, no meu íntimo,
que ela possa usufruir dum momento bom.
Entretanto esta mesma raiz do amor leva-me a
rejeitar a injustiça de alguns terem muito e outros
não terem nada, ou induz-me a procurar que os
próprios descartáveis da sociedade possam viver
um pouco de alegria. Mas isto não é inveja; são
anseios de equidade.
Sem ser arrogante nem se orgulhar
97. Segue-se o termo perpereuetai, que indica
vanglória, desejo de se mostrar superior para impressionar
os outros com atitude pedante e um
pouco agressiva. Quem ama não só evita falar
muito de si mesmo, mas, porque está centrado
nos outros, sabe manter-se no seu lugar sem
pretender estar no centro. A palavra seguinte –
physioutai – é muito semelhante, indicando que o
amor não é arrogante. Literalmente afirma que
não se « engrandece » diante dos outros; mas
indica algo de mais subtil. Não se trata apenas
duma obsessão por mostrar as próprias qualidades;
é pior: perde-se o sentido da realidade, a
pessoa considera-se maior do que é, porque se
crê mais « espiritual» ou «sábia ». Paulo usa este
verbo noutras ocasiões, para dizer, por exemplo,
que « a ciência incha », ao passo que « a caridade
edifica » (1 Cor 8, 1). Por outras palavras, alguns
julgam-se grandes, porque sabem mais do que os
outros, dedicando-se a impor-lhes exigências e
a controlá-los; quando, na realidade, o que nos
faz grandes é o amor que compreende, cuida,
79
integra, está atento aos fracos. Noutro versículo,
usa-o para criticar aqueles que «se tornaram
insolentes» (1 Cor 4, 18), mas, na realidade, têm
mais palavreado do que verdadeiro «poder» do
Espírito (cf. 1 Cor 4, 19).
98. É importante que os cristãos vivam isto no
seu modo de tratar os familiares pouco formados
na fé, frágeis ou menos firmes nas suas convicções.
Às vezes, dá-se o contrário: as pessoas
que, no seio da família, se consideram mais desenvolvidas,
tornam-se arrogantes insuportáveis.
A atitude de humildade aparece aqui como algo
que faz parte do amor, porque, para poder compreender,
desculpar ou servir os outros de coração,
é indispensável curar o orgulho e cultivar
a humildade. Jesus lembrava aos seus discípulos
que, no mundo do poder, cada um procura dominar
o outro, e acrescentava: «não seja assim
entre vós» (Mt 20, 26). A lógica do amor cristão
não é a de quem se considera superior aos outros
e precisa de fazer-lhes sentir o seu poder, mas a
de « quem no meio de vós quiser ser o primeiro,
seja vosso servo» (Mt 20, 27). Na vida familiar,
não pode reinar a lógica do domínio de uns sobre
os outros, nem a competição para ver quem é
mais inteligente ou poderoso, porque esta lógica
acaba com o amor. Vale também para a família o
seguinte conselho: «Revesti-vos todos de humildade
no trato uns com os outros, porque Deus
opõe-se aos soberbos, mas dá a sua graça aos humildes»
(1 Ped 5, 5).
80
Amabilidade
99. Amar é também tornar-se amável, e nisto
está o sentido do termo asjemonéi. Significa que
o amor não age rudemente, não actua de forma
inconveniente, não se mostra duro no trato. Os
seus modos, as suas palavras, os seus gestos são
agradáveis; não são ásperos, nem rígidos. Detesta
fazer sofrer os outros. A cortesia « é uma escola
de sensibilidade e altruísmo», que exige que a
pessoa « cultive a sua mente e os seus sentidos,
aprenda a ouvir, a falar e, em certos momentos, a
calar».107 Ser amável não é um estilo que o cristão
possa escolher ou rejeitar: faz parte das exigências
irrenunciáveis do amor, por isso «todo o ser
humano está obrigado a ser afável com aqueles
que o rodeiam».108 Diariamente « entrar na vida
do outro, mesmo quando faz parte da nossa existência,
exige a delicadeza duma atitude não invasiva,
que renova a confiança e o respeito. (...) E
quanto mais íntimo e profundo for o amor, tanto
mais exigirá o respeito pela liberdade e a capacidade
de esperar que o outro abra a porta do seu
coração».109
100. A fim de se predispor para um verdadeiro
encontro com o outro, requer-se um olhar amável
pousado nele. Isto não é possível quando reina um
107 Octavio Paz, La llama doble (Barcelona 1993), 35. 108 Tomás de Aquino, Summa theologiae, II-II, q. 114, art.
2, ad 1. 109 Francisco, Catequese (13 de Maio de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 14/V/2015), 16.
81
pessimismo que põe em evidência os defeitos e
erros alheios, talvez para compensar os próprios
complexos. Um olhar amável faz com que nos detenhamos
menos nos limites do outro, podendo
assim tolerá-lo e unirmo-nos num projecto comum,
apesar de sermos diferentes. O amor amá-
vel gera vínculos, cultiva laços, cria novas redes de
integração, constrói um tecido social firme. Deste
modo, uma pessoa protege-se a si mesma, pois,
sem sentido de pertença, não se pode sustentar
uma entrega aos outros, acabando cada um por
buscar apenas as próprias conveniências, e a convivência
torna-se impossível. Uma pessoa anti-social
julga que os outros existem para satisfazer as
suas necessidades e, quando o fazem, cumprem
apenas o seu dever. Neste caso, não haveria espaço
para a amabilidade do amor e a sua linguagem. A
pessoa que ama é capaz de dizer palavras de incentivo,
que reconfortam, fortalecem, consolam, estimulam.
Vejamos, por exemplo, algumas palavras
que Jesus dizia às pessoas: «Filho, tem confiança!»
(Mt 9, 2). «Grande é a tua fé!» (Mt 15, 28). «Levanta-te!»
(Mc 5, 41). «Vai em paz» (Lc 7, 50). «Não
temais!» (Mt 14, 27). Não são palavras que humilham,
angustiam, irritam, desprezam. Na família, é
preciso aprender esta linguagem amável de Jesus.
Desprendimento
101. Como se diz muitas vezes, para amar os
outros, é preciso primeiro amar-se a si mesmo.
Todavia este hino à caridade afirma que o amor
«não procura o seu próprio interesse », ou «não
82
procura o que é seu ». Esta expressão aparece ainda
noutro texto: «Não tenha cada um em vista os
próprios interesses, mas todos e cada um exactamente
os interesses dos outros» (Flp 2, 4). Perante
uma afirmação assim clara da Sagrada Escritura,
deve-se evitar de dar prioridade ao amor a si
mesmo, como se fosse mais nobre do que o dom
de si aos outros. Uma certa prioridade do amor
a si mesmo só se pode entender como condição
psicológica, pois uma pessoa que seja incapaz de
se amar a si mesma sente dificuldade em amar os
outros: «Para quem será bom aquele que é mau
para si mesmo? (...) Não há pior do que aquele
que é avaro para si mesmo» (Sir 14, 5-6).
102. Mas o próprio Tomás de Aquino explicou
«ser mais próprio da caridade querer amar
do que querer ser amado»,110 e que de facto « as
mães, que são as que mais amam, procuram mais
amar do que ser amadas».111 Por isso, o amor
pode superar a justiça e transbordar gratuitamente
«sem nada esperar em troca » (Lc 6, 35), até
chegar ao amor maior que é «dar a vida » pelos
outros (Jo 15, 13). Mas será possível um desprendimento
assim, que permite dar gratuitamente e
dar até ao fim? Sem dúvida, porque é o que pede
o Evangelho: «Recebestes de graça, dai de graça »
(Mt 10, 8).
110 Summa theologiae, II-II, q. 27, art. 1, ad. 2. 111 Ibid., II-II, q. 27, art. 1.
83
Sem violência interior
103. Se a primeira expressão do hino nos convidava
à paciência, que evita reagir bruscamente
perante as fraquezas ou erros dos outros, agora
aparece outra palavra – paroxýnetai – que diz respeito
a uma reacção interior de indignação provocada
por algo exterior. Trata-se de uma violência
interna, uma irritação recôndita que nos
põe à defesa perante os outros, como se fossem
inimigos molestos a evitar. Alimentar esta agressividade
íntima, de nada aproveita. Serve apenas
para nos adoentar, acabando por nos isolar. A
indignação é saudável, quando nos leva a reagir
perante uma grave injustiça; mas é prejudicial,
quando tende a impregnar todas as nossas atitudes
para com os outros.
104. O Evangelho convida a olhar primeiro a
trave na própria vista (cf. Mt 7, 5), e nós, cristãos,
não podemos ignorar o convite constante da Palavra
de Deus para não se alimentar a ira: «Não
te deixes vencer pelo mal» (Rm 12, 21); «não nos
cansemos de fazer o bem» (Gal 6, 9). Uma coisa
é sentir a força da agressividade que irrompe,
e outra é consentir nela, deixar que se torne
uma atitude permanente: « Se vos irardes, não
pequeis; que o sol não se ponha sobre o vosso
ressentimento» (Ef 4, 26). Por isso, nunca se deve
terminar o dia sem fazer as pazes na família. «E
como devo fazer as pazes? Ajoelhar-me? Não!
Para restabelecer a harmonia familiar basta um
pequeno gesto, uma coisa de nada. É suficiente
84
uma carícia, sem palavras. Mas nunca permitais
que o dia em família termine sem fazer as pazes».112
A reacção interior perante uma moléstia
que nos causam os outros, deveria ser, antes de
mais nada, abençoar no coração, desejar o bem
do outro, pedir a Deus que o liberte e cure. «Respondei
com palavras de bênção, pois a isto fostes
chamados: a herdar uma bênção» (1 Ped 3, 9). Se
tivermos de lutar contra um mal, façamo-lo; mas
sempre digamos «não» à violência interior.
Perdão
105. Se permitirmos a entrada dum mau sentimento
no nosso íntimo, damos lugar ao ressentimento
que se aninha no coração. A frase logí-
zetai to kakón significa que se «tem em conta o
mal», «trá-lo gravado», ou seja, está ressentido.
O contrário disto é o perdão; perdão fundado
numa atitude positiva que procura compreender
a fraqueza alheia e encontrar desculpas para a
outra pessoa, como Jesus que diz: «Perdoa-lhes,
Pai, porque não sabem o que fazem» (Lc 23, 34).
Entretanto a tendência costuma ser a de buscar
cada vez mais culpas, imaginar cada vez mais
maldades, supor todo o tipo de más intenções, e
assim o ressentimento vai crescendo e cria raízes.
Deste modo, qualquer erro ou queda do cônjuge
pode danificar o vínculo de amor e a estabilidade
familiar. O problema é que, às vezes, atribui-se a
112 Francisco, Catequese (13 de Maio de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 14/V/2015), 16.
85
tudo a mesma gravidade, com o risco de tornar-
-se cruel perante qualquer erro do outro. A justa
reivindicação dos próprios direitos torna-se mais
uma persistente e constante sede de vingança do
que uma sã defesa da própria dignidade.
106. Quando estivermos ofendidos ou desiludidos,
é possível e desejável o perdão; mas
ninguém diz que seja fácil. A verdade é que « a
comunhão familiar só pode ser conservada e
aperfeiçoada com grande espírito de sacrifício.
Exige, de facto, de todos e de cada um, pronta
e generosa disponibilidade à compreensão, à
tolerância, ao perdão, à reconciliação. Nenhuma
família ignora como o egoísmo, o desacordo, as
tensões, os conflitos agridem, de forma violenta
e às vezes mortal, a comunhão: daqui as múltiplas
e variadas formas de divisão da vida familiar».113
107. Hoje sabemos que, para se poder perdoar,
precisamos de passar pela experiência libertadora
de nos compreendermos e perdoarmos a
nós mesmos. Quantas vezes os nossos erros ou
o olhar crítico das pessoas que amamos nos fizeram
perder o amor a nós próprios; isto acaba por
nos levar a acautelar-nos dos outros, esquivando-nos
do seu afecto, enchendo-nos de suspeitas
nas relações interpessoais. Então, poder culpar
os outros torna-se um falso alívio. Faz falta rezar
com a própria história, aceitar-se a si mesmo, sa-
113 João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro
de 1981), 21: AAS 74 (1982), 106.
86
ber conviver com as próprias limitações e inclusive
perdoar-se, para poder ter esta mesma atitude
com os outros.
108. Mas isto pressupõe a experiência de ser
perdoados por Deus, justificados gratuitamente
e não pelos nossos méritos. Fomos envolvidos
por um amor prévio a qualquer obra nossa, que
sempre dá uma nova oportunidade, promove e
incentiva. Se aceitamos que o amor de Deus é
incondicional, que o carinho do Pai não se deve
comprar nem pagar, então poderemos amar sem
limites, perdoar aos outros, ainda que tenham
sido injustos para connosco. Caso contrário, a
nossa vida em família deixará de ser um lugar
de compreensão, companhia e incentivo, e tornar-se-á
um espaço de permanente tensão ou de
castigo mútuo.
Alegrar-se com os outros
109. A expressão jairei epi te adikía indica algo
de negativo arraigado no segredo do coração da
pessoa. É a atitude venenosa de quem, ao ver
feita a alguém uma injustiça, se alegra. A frase
é completada pela seguinte, que o diz de forma
positiva: sygjairei te alétheia – rejubila com a verdade.
Por outras palavras, alegra-se com o bem
do outro, quando se reconhece a sua dignidade,
quando se apreciam as suas capacidades e as suas
boas obras. Isto é impossível para quem sente a
necessidade de estar sempre a comparar-se ou a
competir, inclusive com o próprio cônjuge, até
87
ao ponto de se alegrar secretamente com os seus
fracassos.
110. Quando uma pessoa que ama pode fazer
algo de bom pelo outro, ou quando vê que a vida
está a correr bem ao outro, vive isso com alegria
e, assim, dá glória a Deus, porque «Deus ama
quem dá com alegria » (2 Cor 9, 7), nosso Senhor
aprecia de modo especial quem se alegra com a
felicidade do outro. Se não alimentamos a nossa
capacidade de rejubilar com o bem do outro,
concentrando-nos sobretudo nas nossas próprias
necessidades, condenamo-nos a viver com pouca
alegria, porque – como disse Jesus – « a felicidade
está mais em dar do que em receber» (At 20, 35).
A família deve ser sempre o lugar onde uma pessoa
que consegue algo de bom na vida, sabe que
ali se vão congratular com ela.
Tudo desculpa
111. O elenco é completado com quatro expressões
que falam duma totalidade: «tudo».
Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
Assim se destaca vigorosamente o dinamismo
contracorrente do amor, capaz de enfrentar
qualquer coisa que o possa ameaçar.
112. Em primeiro lugar, diz-se que «tudo desculpa
– panta stégei». É diferente de «não ter em
conta o mal», porque este termo tem a ver com
o uso da língua; pode significar « guardar silêncio»
a propósito do mal que possa haver noutra
88
pessoa. Implica limitar o juízo, conter a inclina-
ção para se emitir uma condenação dura e implacável:
«Não condeneis e não sereis condenados»
(Lc 6, 37). Embora isto vá contra o uso que
habitualmente fazemos da língua, a Palavra de
Deus pede-nos: «Não faleis mal uns dos outros,
irmãos» (Tg 4, 11). Deter-se a danificar a imagem
do outro é uma maneira de reforçar a própria,
de descarregar ressentimentos e invejas, sem se
importar com o dano causado. Muitas vezes esquece-se
que a difamação pode ser um grande
pecado, uma grave ofensa a Deus, quando afecta
seriamente a boa fama dos outros, causando-lhes
danos muito difíceis de reparar. Por isso a Palavra
de Deus se mostra tão dura com a língua, dizendo
que « é um mundo de iniquidade [que] contamina
todo o corpo» (Tg 3, 6), « um mal incontrolável,
carregado de veneno mortal» (Tg 3, 8).
Se « com ela amaldiçoamos os homens, feitos à
semelhança de Deus» (Tg 3, 9), o amor faz o contrário,
defendendo a imagem dos outros e com
uma delicadeza tal que leva mesmo a preservar a
boa fama dos inimigos. Ao defender a lei divina,
é preciso nunca esquecer esta exigência do amor.
113. Os esposos, que se amam e se pertencem,
falam bem um do outro, procuram mostrar mais
o lado bom do cônjuge do que as suas fraquezas
e erros. Em todo o caso, guardam silêncio para
não danificar a sua imagem. Mas não é apenas
um gesto externo, brota duma atitude interior.
Também não é a ingenuidade de quem preten-
89
de não ver as dificuldades e os pontos fracos do
outro, mas a perspectiva ampla de quem coloca
estas fraquezas e erros no seu contexto; lembra-
-se de que estes defeitos constituem apenas uma
parte, não são a totalidade do ser do outro: um
facto desagradável no relacionamento não é a totalidade
desse relacionamento. Assim é possível
aceitar, com simplicidade, que todos somos uma
complexa combinação de luzes e sombras. O outro
não é apenas aquilo que me incomoda; é muito
mais do que isso. E, pela mesma razão, não lhe
exijo que seja perfeito o seu amor para o apreciar:
ama-me como é e como pode, com os seus limites,
mas o facto de o seu amor ser imperfeito
não significa que seja falso ou que não seja real.
É real, mas limitado e terreno. Por isso, se eu lhe
exigir demais, de alguma maneira mo fará saber,
pois não poderá nem aceitará desempenhar o papel
dum ser divino nem estar ao serviço de todas
as minhas necessidades. O amor convive com a
imperfeição, desculpa-a e sabe guardar silêncio
perante os limites do ser amado.
Confia
114. «Panta pisteuei – tudo crê ». Pelo contexto,
não se deve entender esta «fé » em sentido teológico,
mas no sentido comum de « confiança ».
Não se trata apenas de não suspeitar que o outro
esteja mentindo ou enganando; esta confiança
básica reconhece a luz acesa por Deus que se esconde
por detrás da escuridão, ou a brasa ainda
acesa sob as cinzas.
90
115. É precisamente esta confiança que torna
possível uma relação em liberdade. Não é necessário
controlar o outro, seguir minuciosamente
os seus passos, para evitar que fuja dos meus bra-
ços. O amor confia, deixa em liberdade, renuncia
a controlar tudo, a possuir, a dominar. Esta
liberdade, que possibilita espaços de autonomia,
abertura ao mundo e novas experiências, consente
que a relação se enriqueça e não se transforme
numa endogamia sem horizontes. Assim, ao
reencontrar-se, os cônjuges podem viver a alegria
de partilhar o que receberam e aprenderam fora
do circuito familiar. Ao mesmo tempo torna possível
a sinceridade e a transparência, porque uma
pessoa, quando sabe que os outros confiam nela
e apreciam a bondade basilar do seu ser, mostra-se
como é, sem dissimulações. Pelo contrá-
rio, quando alguém sabe que sempre suspeitam
dele, julgam-no sem compaixão e não o amam
incondicionalmente, preferirá guardar os seus segredos,
esconder as suas quedas e fraquezas, fingir
o que não é. Concluindo, uma família, onde
reina uma confiança sólida, carinhosa e, suceda o
que suceder, sempre se volta a confiar, permite o
florescimento da verdadeira identidade dos seus
membros, fazendo com que se rejeite espontaneamente
o engano, a falsidade e a mentira.
Espera
116. Panta elpízei: não desespera do futuro. Ligado
à palavra anterior, indica a esperança de
quem sabe que o outro pode mudar; sempre es-
91
pera que seja possível um amadurecimento, um
inesperado surto de beleza, que as potencialidades
mais recônditas do seu ser germinem algum
dia. Não significa que, nesta vida, tudo vai mudar;
implica aceitar que nem tudo aconteça como se
deseja, mas talvez Deus escreva direito por linhas
tortas e saiba tirar algum bem dos males que não
se conseguem vencer nesta terra.
117. Aqui aparece a esperança no seu sentido
pleno, porque inclui a certeza duma vida para
além da morte. Aquela pessoa, com todas as
suas fraquezas, é chamada à plenitude do Céu: lá,
completamente transformada pela ressurreição
de Cristo, cessarão de existir as suas fraquezas,
trevas e patologias; lá, o verdadeiro ser daquela
pessoa resplandecerá com toda a sua potência
de bem e beleza. Isto permite-nos, no meio das
moléstias desta terra, contemplar aquela pessoa
com um olhar sobrenatural, à luz da esperança, e
aguardar aquela plenitude que, embora hoje não
seja visível, há-de receber um dia no Reino celeste.
Tudo suporta
118. Panta hypoménei significa que suporta, com
espírito positivo, todas as contrariedades. É manter-se
firme no meio dum ambiente hostil. Não
consiste apenas em tolerar algumas coisas molestas,
mas é algo de mais amplo: uma resistência
dinâmica e constante, capaz de superar qualquer
desafio. É amor que apesar de tudo não desiste,
92
mesmo que todo o contexto convide a outra coisa.
Manifesta uma dose de heroísmo tenaz, de
força contra qualquer corrente negativa, uma op-
ção pelo bem que nada pode derrubar. Isto lembra-me
Martin Luther King, quando reafirmava
a opção pelo amor fraterno, mesmo no meio das
piores perseguições e humilhações: «A pessoa
que mais te odeia, tem algo de bom nela; mesmo
a nação que mais odeia, tem algo de bom nela;
mesmo a raça que mais odeia, tem algo de bom
nela. E, quando chegas ao ponto de fixar o rosto
de cada ser humano e, bem no fundo dele, vês o
que a religião chama a “imagem de Deus”, come-
ças, não obstante tudo, a amá-lo. Não importa o
que faça, lá vês a imagem de Deus. Há um elemento
de bondade de que nunca poderás livrar-
-te. (...) Outra forma de amares o teu inimigo é
esta: quando surge a oportunidade de derrotares
o teu inimigo, aquele é o momento em que deves
decidir não o fazer. (...) Quando te elevas ao nível
do amor, da sua grande beleza e poder, a única
coisa que procuras derrotar são os sistemas malignos.
Às pessoas que caíram na armadilha deste
sistema, tu ama-las, mas procuras derrotar o sistema.
(...) Ódio por ódio só intensifica a existência
do ódio e do mal no universo. Se eu te bato
e tu me bates, e eu te devolvo a pancada e tu me
devolves a pancada, e assim por diante… obviamente
continua-se até ao infinito; simplesmente
nunca termina. Nalgum ponto, alguém deve ter
um pouco de bom senso, e esta é a pessoa forte.
A pessoa forte é aquela que pode quebrar a ca-
93
deia do ódio, a cadeia do mal. (...) Alguém deve
ter bastante fé e moralidade para a quebrar e injectar
dentro da própria estrutura do universo o
elemento forte e poderoso do amor».114
119. Na vida familiar, é preciso cultivar esta
força do amor, que permite lutar contra o mal
que a ameaça. O amor não se deixa dominar pelo
ressentimento, o desprezo das pessoas, o desejo
de se lamentar ou vingar de alguma coisa. O
ideal cristão, nomeadamente na família, é amor
que apesar de tudo não desiste. Deixa-me maravilhado,
por exemplo, a atitude das pessoas que,
para se proteger da violência física, tiveram de
separar-se do seu cônjuge e todavia, pela caridade
conjugal que sabe ultrapassar os sentimentos,
foram capazes de procurar o seu bem, mesmo
através de terceiros, em momentos de doença,
tribulação ou dificuldade. Isto também é amor
que apesar de tudo não desiste.
Crescer na caridade conjugal
120. O cântico de São Paulo, que acabámos
de repassar, permite-nos avançar para a caridade
conjugal. Esta é o amor que une os esposos,115
amor santificado, enriquecido e iluminado pela
114 Sermon delivered at Dexter Avenue Baptist Church (Montgomery-Alabama
17 de Novembro de 1957). 115 São Tomás de Aquino entende o amor como «vis unitiva
» (Summa theologiae, I, q. 20, art. 1, ad 3), retomando uma expressão
de Dionísio Pseudo-Areopagita (De divinis monibus, IV,
12: PG 3, 709).
94
graça do sacramento do matrimónio. É uma
« união afectiva »,116 espiritual e oblativa, mas que
reúne em si a ternura da amizade e a paixão erótica,
embora seja capaz de subsistir mesmo quando
os sentimentos e a paixão enfraquecem. O Papa
Pio XI ensinava que este amor permeia todos os
deveres da vida conjugal e «detém como que o
primado da nobreza ».117 Com efeito, este amor
forte, derramado pelo Espírito Santo, é reflexo da
aliança indestrutível entre Cristo e a humanidade
que culminou na entrega até ao fim na cruz. «O
Espírito, que o Senhor infunde, dá um coração
novo e torna o homem e a mulher capazes de se
amarem como Cristo nos amou. O amor conjugal
atinge assim aquela plenitude para a qual está
interiormente ordenado: a caridade conjugal».118
121. O matrimónio é um sinal precioso, porque,
« quando um homem e uma mulher celebram
o sacramento do matrimónio, Deus, por
assim dizer, “espelha-Se” neles, imprime neles
as suas características e o carácter indelével do
seu amor. O matrimónio é o ícone do amor de
Deus por nós. Com efeito, também Deus é comunhão:
as três Pessoas – Pai, Filho e Espírito
Santo – vivem desde sempre e para sempre em
unidade perfeita. É precisamente nisto que con-
116 Ibid., II-II, q. 27, art. 2. 117 Carta enc. Casti connubii (31 de Dezembro de 1930):
AAS 22 (1930), 547-548.
118 João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro
de 1981), 13: AAS 74 (1982), 94.
95
siste o mistério do matrimónio: dos dois esposos,
Deus faz uma só existência ».119 Isto tem consequências
muito concretas na vida do dia-a-dia,
porque, « em virtude do sacramento, os esposos
são investidos numa autêntica missão, para que
possam tornar visível, a partir das realidades simples
e ordinárias, o amor com que Cristo ama a
sua Igreja, continuando a dar a vida por ela ».120
122. Todavia convém não confundir planos
diferentes: não se deve atirar para cima de duas
pessoas limitadas o peso tremendo de ter que reproduzir
perfeitamente a união que existe entre
Cristo e a sua Igreja, porque o matrimónio como
sinal implica « um processo dinâmico, que avança
gradualmente com a progressiva integração dos
dons de Deus».121
A vida toda, tudo em comum
123. Depois do amor que nos une a Deus, o
amor conjugal é a « amizade maior».122 É uma
união que tem todas as características duma boa
amizade: busca do bem do outro, reciprocidade,
intimidade, ternura, estabilidade e uma semelhan-
ça entre os amigos que se vai construindo com
119 Francisco, Catequese (2 de Abril de 2014): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 03/IV/2014), 12. 120 Ibidem. 121 João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro
de 1981), 9: AAS 74 (1982), 90. 122 Tomás de Aquino, Summa contra gentiles, III, 123; cf. Aristóteles,
Ética a Nicómaco, 8, 12 (ed. Bywater, Oxford 1984, 174).
96
a vida partilhada. O matrimónio, porém, acrescenta
a tudo isso uma exclusividade indissolúvel,
que se expressa no projecto estável de partilhar e
construir juntos toda a existência. Sejamos sinceros
na leitura dos sinais da realidade: quem está
enamorado não projecta que essa relação possa
ser apenas por um certo tempo; quem vive intensamente
a alegria de se casar não está a pensar
em algo de passageiro; aqueles que acompanham
a celebração duma união cheia de amor, embora
frágil, esperam que possa perdurar no tempo; os
filhos querem não só que os seus pais se amem,
mas também que sejam fiéis e permaneçam sempre
juntos. Estes e outros sinais mostram que,
na própria natureza do amor conjugal, existe a
abertura ao definitivo. A união, que se cristaliza
na promessa matrimonial para sempre, é mais
do que uma formalidade social ou uma tradição,
porque radica-se nas inclinações espontâneas da
pessoa humana. E, para os crentes, é uma aliança
diante de Deus, que exige fidelidade: «O Senhor
constituiu-Se testemunha entre ti e a esposa da
tua juventude, aquela que tu atraiçoaste, embora
ela fosse a tua companheira e aquela com quem
fizeste aliança. (...) Ninguém atraiçoe a mulher
da sua juventude, porque Eu odeio o divórcio»
(Ml 2, 14.15-16).
124. Um amor frágil ou enfermiço, incapaz de
aceitar o matrimónio como um desafio que exige
lutar, renascer, reinventar-se e recomeçar sempre
de novo até à morte, não pode sustentar um nível
97
alto de compromisso. Cede à cultura do provisó-
rio, que impede um processo constante de crescimento.
Mas «prometer um amor que dure para
sempre é possível, quando se descobre um desígnio
maior que os próprios projectos, que nos
sustenta e permite doar o futuro inteiro à pessoa
amada ».123 Para que este amor possa atravessar
todas as provações e manter-se fiel contra tudo,
requer-se o dom da graça que o fortalece e eleva.
Como dizia São Roberto Belarmino, «o facto de
um só se unir com uma só num vínculo indissolúvel,
de modo que não possam separar-se, sejam
quais forem as dificuldades, e mesmo quando se
perdeu a esperança da prole, isto não pode acontecer
sem um grande mistério».124
125. Além disso, o matrimónio é uma amizade
que inclui as características próprias da paixão,
mas sempre orientada para uma união cada vez
mais firme e intensa. Com efeito, «não foi instituído
só em ordem à procriação», mas para que
o amor mútuo «se exprima convenientemente,
aumente e chegue à maturidade ».125 Esta amizade
peculiar entre um homem e uma mulher adquire
um carácter totalizante, que só se verifica
na união conjugal. E precisamente por ser totali-
123 Francisco, Carta enc. Lumen fidei (29 de Junho de
2013), 52: AAS 105 (2013), 590. 124 «De sacramento matrimonii», I, 2 in: Idem, Disputationes
de controversiis christianae fidei, III, 5, 3 (ed. Giuliano, Nápoles
1858, 778). 125 Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no
mundo contemporâneo Gaudium et spes, 50.
98
zante, esta união também é exclusiva, fiel e aberta
à geração. Partilha-se tudo, incluindo a sexualidade,
sempre no mútuo respeito. Isto mesmo
expressou o Concílio Vaticano II ao dizer que,
« unindo o humano e o divino, esse amor leva os
esposos ao livre e recíproco dom de si mesmos,
que se manifesta com a ternura do afecto e com
as obras, e penetra toda a sua vida ».126
Alegria e beleza
126. No matrimónio, convém cuidar a alegria
do amor. Quando a busca do prazer é obsessiva,
encerra-nos numa coisa só e não permite encontrar
outros tipos de satisfações. Pelo contrário,
a alegria expande a capacidade de desfrutar e
permite-nos encontrar prazer em realidades variadas,
mesmo nas fases da vida em que o prazer
se apaga. Por isso, dizia São Tomás que se usa
a palavra « alegria » para se referir à dilatação da
amplitude do coração.127 A alegria matrimonial,
que se pode viver mesmo no meio do sofrimento,
implica aceitar que o matrimónio é uma combinação
necessária de alegrias e fadigas, de tensões
e repouso, de sofrimentos e libertações, de
satisfações e buscas, de aborrecimentos e prazeres,
sempre no caminho da amizade que impele
os esposos a cuidarem um do outro: «prestam-se
recíproca ajuda e serviço».128
126 Ibid., 49. 127 Cf. Summa theologiae, I-II, q. 31, art. 3, ad 3. 128 Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no
mundo contemporâneo Gaudium et spes, 48.
99
127. O amor de amizade chama-se « caridade »,
quando capta e aprecia o « valor sublime » que
tem o outro.129 A beleza – o « valor sublime » do
outro, que não coincide com os seus atractivos
físicos ou psicológicos – permite-nos saborear o
carácter sagrado da pessoa, sem a imperiosa necessidade
de a possuir. Na sociedade de consumo,
o sentido estético empobrece-se e, assim, se
apaga a alegria. Tudo se destina a ser comprado,
possuído ou consumido, incluindo as pessoas.
Ao contrário, a ternura é uma manifestação deste
amor que se liberta do desejo da posse egoísta.
Leva-nos a vibrar à vista duma pessoa, com
imenso respeito e um certo receio de lhe causar
dano ou tirar a sua liberdade. O amor pelo outro
implica este gosto de contemplar e apreciar o que
é belo e sagrado do seu ser pessoal, que existe
para além das minhas necessidades. Isto permite-
-me procurar o seu bem, mesmo quando sei que
não pode ser meu ou quando se tornou fisicamente
desagradável, agressivo ou chato. Por isso,
« do amor pelo qual uma pessoa me é agradável,
depende que lhe dê algo de graça ».130
128. A experiência estética do amor exprime-se
naquele olhar que contempla o outro como fim
em si mesmo, ainda que esteja doente, velho ou
privado de atractivos sensíveis. O olhar que aprecia
tem uma enorme importância e, recusá-lo,
habitualmente faz dano. Às vezes, quantas coisas
129 Tomás de Aquino, Summa theologiae, I-II, q. 26, art. 3. 130 Ibid., I-II, q. 110, art. 1.
100
fazem os cônjuges e os filhos para ser considerados
e tidos em conta! Muitas feridas e crises têm
a sua origem no momento em que deixamos de
nos contemplar. Isto é o que exprimem algumas
queixas e reclamações, que se ouvem nas famílias:
«O meu marido não me olha, para ele parece que
sou invisível». «Por favor, olha para mim, quando
te falo». «A minha mulher já não me olha,
agora só tem olhos para os filhos». «Em minha
casa, não interesso a ninguém, nem sequer me
vêem, é como se não existisse ». O amor abre os
olhos e permite ver, mais além de tudo, quanto
vale um ser humano.
129. A alegria deste amor contemplativo deve
ser cultivada. Uma vez que somos feitos para amar,
sabemos que não há maior alegria do que partilhar
um bem: «Dá e recebe, e alegra a tua vida » (Sir
14, 16). As alegrias mais intensas da vida surgem,
quando se pode provocar a felicidade dos outros,
numa antecipação do Céu. Vem a propósito recordar
a cena feliz do filme A festa de Babette, quando a
generosa cozinheira recebe um abraço agradecido
e este elogio: «Como deliciarás os anjos!» É doce
e consoladora a alegria de fazer as delícias dos outros,
vê-los usufruir delas. Este júbilo, efeito do
amor fraterno, não é o da vaidade de quem olha
para si mesmo, mas o do amante que se compraz
no bem do ser amado, que transborda para o outro
e se torna fecundo nele.
130. Por outro lado, a alegria renova-se no sofrimento.
Como dizia Santo Agostinho, « quanto
101
mais grave foi o perigo no combate, tanto maior
é o gozo no triunfo».131 Depois de ter sofrido e
lutado unidos, os cônjuges podem experimentar
que valeu a pena, porque conseguiram algo de
bom, aprenderam alguma coisa juntos ou podem
apreciar melhor o que têm. Poucas alegrias humanas
são tão profundas e festivas como quando
duas pessoas que se amam conquistaram, conjuntamente,
algo que lhes custou um grande esforço
compartilhado.
Casar-se por amor
131. Quero dizer aos jovens que nada disto é
prejudicado, quando o amor assume a modalidade
da instituição matrimonial. A união encontra
nesta instituição o modo de canalizar a sua estabilidade
e o seu crescimento real e concreto.
É verdade que o amor é muito mais do que um
consentimento externo ou uma forma de contrato
matrimonial, mas é igualmente certo que a
decisão de dar ao matrimónio uma configuração
visível na sociedade com certos compromissos
manifesta a sua relevância: mostra a seriedade da
identificação com o outro, indica uma superação
do individualismo de adolescente e expressa a
firme opção de se pertencerem um ao outro. Casar-se
é uma maneira de exprimir que realmente
se abandonou o ninho materno, para tecer outros
laços fortes e assumir uma nova responsabilida-
131 Confissões, VIII, 3, 7: PL 32, 752.
102
de perante outra pessoa. Isto vale muito mais do
que uma mera associação espontânea para mútua
compensação, que seria a privatização do matrimónio.
Este, como instituição social, é protec-
ção e instrumento para o compromisso mútuo,
para o amadurecimento do amor, para que a op-
ção pelo outro cresça em solidez, concretização e
profundidade, e possa, por sua vez, cumprir a sua
missão na sociedade. Por isso, o matrimónio supera
qualquer moda passageira e persiste. A sua
essência está radicada na própria natureza da pessoa
humana e do seu carácter social. Implica uma
série de obrigações; mas estas brotam do próprio
amor, um amor tão decidido e generoso que é
capaz de arriscar o futuro.
132. Semelhante opção pelo matrimónio expressa
a decisão real e efectiva de transformar
dois caminhos num só, aconteça o que acontecer
e contra todo e qualquer desafio. Pela seriedade
de que se reveste este compromisso público
de amor, não pode ser uma decisão precipitada;
mas, pela mesma razão, também não pode ser
adiado indefinidamente. Comprometer-se de
forma exclusiva e definitiva com outrem sempre
encerra uma parcela de risco e de aposta ousada.
A recusa de assumir um tal compromisso é
egoísta, interesseira, mesquinha; não consegue
reconhecer os direitos do outro e não chega jamais
a apresentá-lo à sociedade como digno de
ser amado incondicionalmente. Aliás, aqueles
que estão verdadeiramente enamorados tendem
103
a manifestar aos outros o seu amor. O amor
concretizado num matrimónio contraído diante
dos outros, com todas as obrigações decorrentes
dessa institucionalização, é manifestação e protecção
dum «sim» que se dá sem reservas nem
restrições. Este sim significa dizer ao outro que
poderá sempre confiar, não será abandonado,
se perder atractivo, se tiver dificuldades ou se se
apresentarem novas possibilidades de prazer ou
de interesses egoístas.
Amor que se manifesta e cresce
133. O amor de amizade unifica todos os aspectos
da vida matrimonial e ajuda os membros
da família a avançarem em todas as suas fases.
Por isso, os gestos que exprimem este amor devem
ser constantemente cultivados, sem mesquinhez,
cheios de palavras generosas. Na família,
« é necessário usar três palavras: com licença,
obrigado, desculpa. Três palavras-chave ».132
«Quando numa família não somos invasores e
pedimos “com licença”, quando na família não
somos egoístas e aprendemos a dizer “obrigado”,
e quando na família nos damos conta de que
fizemos algo incorrecto e pedimos “desculpa”,
nessa família existe paz e alegria ».133 Não seja-
132 Francisco, Discurso às famílias do mundo inteiro por ocasião
da sua peregrinação a Roma no Ano da Fé (26 de Outubro de 2013):
AAS 105 (2013), 980.
133 Idem, Angelus (29 de Dezembro de 2013): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 02/I/2014), 12.
104
mos mesquinhos no uso destas palavras, sejamos
generosos repetindo-as dia-a-dia, porque «pesam
certos silêncios, às vezes mesmo em família, entre
marido e mulher, entre pais e filhos, entre irmãos».134
Pelo contrário, as palavras adequadas,
ditas no momento certo, protegem e alimentam
o amor dia após dia.
134. Tudo isto se realiza num caminho de contínuo
crescimento. Esta forma muito particular
de amor, que é o matrimónio, é chamada a um
amadurecimento constante, pois deve aplicar-se-
-lhe sempre aquilo que São Tomás de Aquino dizia
da caridade: «A caridade, devido à sua natureza,
não tem um termo de aumento, porque é uma
participação da caridade infinita que é o Espírito
Santo. (...) E, do lado do sujeito, também não é
possível prefixar-lhe um termo, porque, ao crescer
na caridade, eleva-se também a capacidade
para um aumento maior».135 Paulo exortava com
veemência: «O Senhor vos faça crescer e superabundar
de caridade uns para com os outros» (1
Ts 3, 12); e acrescenta: «A respeito do amor (...),
exortamo-vos, irmãos, a progredir sempre mais»
(1 Ts 4, 9.10). Sempre mais. O amor matrimonial
não se estimula falando, antes de mais nada, da
indissolubilidade como uma obrigação, nem repetindo
uma doutrina, mas robustecendo-o por
134 Idem, Discurso às famílias do mundo inteiro por ocasião da
sua peregrinação a Roma no Ano da Fé (26 de Outubro de 2013):
AAS 105 (2013), 978.
135 Summa theologiae, II-II, q. 24, art. 7.
105
meio dum crescimento constante sob o impulso
da graça. O amor que não cresce, começa a correr
perigo; e só podemos crescer correspondendo
à graça divina com mais actos de amor, com
actos de carinho mais frequentes, mais intensos,
mais generosos, mais ternos, mais alegres. O marido
e a mulher «tomam consciência da própria
unidade e cada vez mais a realizam».136 O dom
do amor divino que se derrama nos esposos é, ao
mesmo tempo, um apelo a um constante desenvolvimento
deste dom da graça.
135. Não fazem bem certas fantasias sobre um
amor idílico e perfeito, privando-o assim de todo
o estímulo para crescer. Uma ideia celestial do
amor terreno esquece que o melhor ainda não
foi alcançado, o vinho sazonado com o tempo.
Como recordaram os bispos do Chile, «não
existem as famílias perfeitas que a publicidade
falaciosa e consumista nos propõe. Nelas, não
passam os anos, não existe a doença, a tribula-
ção nem a morte. (...) A publicidade consumista
mostra uma realidade ilusória que não tem nada
a ver com a realidade que devem enfrentar no
dia-a-dia os pais e as mães de família ».137 É mais
saudável aceitar com realismo os limites, os desafios
e as imperfeições, e dar ouvidos ao apelo
para crescer juntos, fazer amadurecer o amor e
cultivar a solidez da união, suceda o que suceder.
136 Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no
mundo contemporâneo Gaudium et spes, 48. 137 Conferência Episcopal do Chile, La vida y la familia:
regalos de Dios para cada uno de nosotros (21 de Julho de 2014).
106
O diálogo
136. O diálogo é uma modalidade privilegiada
e indispensável para viver, exprimir e maturar o
amor na vida matrimonial e familiar. Mas requer
uma longa e diligente aprendizagem. Homens
e mulheres, adultos e jovens têm maneiras diversas
de comunicar, usam linguagens diferentes,
regem-se por códigos distintos. O modo de
perguntar, a forma de responder, o tom usado,
o momento escolhido e muitos outros factores
podem condicionar a comunicação. Além disso,
é sempre necessário cultivar algumas atitudes que
são expressão de amor e tornam possível o diá-
logo autêntico.
137. Reservar tempo, tempo de qualidade, que
permita escutar, com paciência e atenção, até que
o outro tenha manifestado tudo o que precisava
de comunicar. Isto requer a ascese de não come-
çar a falar antes do momento apropriado. Em
vez de começar a dar opiniões ou conselhos, é
preciso assegurar-se de ter escutado tudo o que
o outro tem necessidade de dizer. Isto implica
fazer silêncio interior, para escutar sem ruídos no
coração e na mente: despojar-se das pressas, pôr
de lado as próprias necessidades e urgências, dar
espaço. Muitas vezes um dos cônjuges não precisa
duma solução para os seus problemas, mas de
ser ouvido. Tem de sentir que se apreendeu a sua
mágoa, a sua desilusão, o seu medo, a sua ira, a
sua esperança, o seu sonho. Todavia é frequente
ouvir estes queixumes: «Não me ouve. E quando
107
parece que o faz, na realidade está a pensar noutra
coisa ». «Falo-lhe e tenho a sensação de que
está à espera que acabe de vez ». «Quando lhe
falo, tenta mudar de assunto ou dá-me respostas
rápidas para encerrar a conversa ».
138. Desenvolver o hábito de dar real importância
ao outro. Trata-se de dar valor à sua pessoa,
reconhecer que tem direito de existir, pensar
de maneira autónoma e ser feliz. É preciso
nunca subestimar aquilo que diz ou reivindica,
ainda que seja necessário exprimir o meu ponto
de vista. A tudo isto subjaz a convicção de que
todos têm algo para dar, pois têm outra experiência
da vida, olham doutro ponto de vista, desenvolveram
outras preocupações e possuem outras
capacidades e intuições. É possível reconhecer a
verdade do outro, a importância das suas preocupações
mais profundas e a motivação de fundo
do que diz, inclusive das palavras agressivas. Para
isso, é preciso colocar-se no seu lugar e interpretar
a profundidade do seu coração, individuar o
que o apaixona, e tomar essa paixão como ponto
de partida para aprofundar o diálogo.
139. Amplitude mental, para não se encerrar
obsessivamente numas poucas ideias, e flexibilidade
para poder modificar ou completar as
próprias opiniões. É possível que, do meu pensamento
e do pensamento do outro, possa surgir
uma nova síntese que nos enriqueça a ambos. A
unidade, a que temos de aspirar, não é uniformidade,
mas uma « unidade na diversidade » ou
108
uma «diversidade reconciliada ». Neste estilo
enriquecedor de comunhão fraterna, seres diferentes
encontram-se, respeitam-se e apreciam-se,
mas mantendo distintos matizes e acentos que
enriquecem o bem comum. Temos de nos libertar
da obrigação de ser iguais. Também é necessária
sagacidade para advertir a tempo eventuais
«interferências», a fim de que não destruam um
processo de diálogo. Por exemplo, reconhecer os
maus sentimentos que poderiam surgir e relativizá-los,
para não prejudicarem a comunicação.
É importante a capacidade de expressar aquilo
que se sente, sem ferir; utilizar uma linguagem
e um modo de falar que possam ser mais facilmente
aceites ou tolerados pelo outro, embora
o conteúdo seja exigente; expor as próprias críticas,
mas sem descarregar a ira como uma forma
de vingança, e evitar uma linguagem moralizante
que procure apenas agredir, ironizar, culpabilizar,
ferir. Há tantas discussões no casal que não são
por questões muito graves; às vezes trata-se de
pequenas coisas, pouco relevantes, mas o que altera
os ânimos é o modo de as dizer ou a atitude
que se assume no diálogo.
140. Ter gestos de solicitude pelo outro e demonstrações
de carinho. O amor supera as piores
barreiras. Quando se pode amar alguém ou
quando nos sentimos amados por essa pessoa,
conseguimos entender melhor o que ela quer
exprimir e fazer-nos compreender. É preciso superar
a fragilidade que nos leva a temer o outro
109
como se fosse um « concorrente ». É muito importante
fundar a própria segurança em opções
profundas, convicções e valores, e não no desejo
de ganhar uma discussão ou no facto de nos darem
razão.
141. Por último, reconheçamos que, para ser
profícuo o diálogo, é preciso ter algo para se dizer;
e isto requer uma riqueza interior que se alimenta
com a leitura, a reflexão pessoal, a oração
e a abertura à sociedade. Caso contrário, a conversa
torna-se aborrecida e inconsistente. Quando
cada um dos cônjuges não cultiva o próprio
espírito e não há uma variedade de relações com
outras pessoas, a vida familiar torna-se endogâ-
mica e o diálogo fica empobrecido.
Amor apaixonado
142. O Concílio Vaticano II ensinou que este
amor conjugal « compreende o bem de toda a
pessoa e, por conseguinte, pode conferir especial
dignidade às manifestações do corpo e do
espírito, enobrecendo-as como elementos e sinais
peculiares do amor conjugal».138 Deve haver
qualquer motivo para um amor sem prazer nem
paixão se revelar insuficiente a simbolizar a união
do coração humano com Deus: «Todos os místicos
afirmaram que o amor sobrenatural e o amor
celeste encontram os símbolos que procuram
138 Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo
Gaudium et spes, 49.
110
mais no amor matrimonial do que na amizade,
no sentimento filial ou na dedicação a uma causa.
E o motivo encontra-se precisamente na sua
totalidade ».139 Sendo assim, por que não determo-nos
a falar dos sentimentos e da sexualidade
no matrimónio?
O mundo das emoções
143. Desejos, sentimentos, emoções (os clássicos
chamavam-lhes «paixões») ocupam um lugar
importante no matrimónio. Geram-se quando
«outro» se torna presente e intervém na minha
vida. É próprio de todo o ser vivo tender para
outra realidade, e esta tendência reveste-se sempre
de sinais afectivos basilares: prazer ou sofrimento,
alegria ou tristeza, ternura ou receio. São
o pressuposto da actividade psicológica mais elementar.
O ser humano é um vivente desta terra, e
tudo o que faz e busca está carregado de paixões.
144. Verdadeiro homem, Jesus vivia as coisas
com grande emotividade. Por isso, sofria com a
rejeição de Jerusalém (cf. Mt 23, 37) e, por esta
situação, chorou (cf. Lc 19, 41). Compadecia-Se
também à vista da multidão atribulada (cf. Mc 6,
34). Vendo os outros a chorar, comovia-Se e turbava-Se
(cf. Jo 11, 33), e Ele mesmo chorou pela
morte dum amigo (cf. Jo 11, 35). Estas manifesta-
ções da sua sensibilidade mostram até que ponto
estava aberto aos outros o seu coração humano.
139 A. Sertillanges, L’amour chrétien (Paris 1920), 174.
111
145. Experimentar uma emoção não é, em si
mesmo, algo moralmente bom nem mau.140 Começar
a sentir desejo ou repulsa não é pecaminoso
nem censurável. O que pode ser bom ou
mau é o acto que a pessoa realiza movida ou sustentada
por uma paixão. Pois, se os sentimentos
são alimentados, procurados e, por causa deles,
cometemos más acções, o mal está na decisão de
os alimentar e nos actos maus que se seguem.
Na mesma linha, sentir atração por alguém não
é, de por si, um bem. Se esta atracção me leva a
procurar que essa pessoa se torne minha escrava,
o sentimento estará ao serviço do meu egoísmo.
Julgar que somos bons só porque «provamos
sentimentos», é um tremendo engano. Há pessoas
que se sentem capazes dum grande amor, só
porque têm grande necessidade de afecto, mas
não conseguem lutar pela felicidade dos outros
e vivem confinados nos próprios desejos. Neste
caso, os sentimentos desviam dos grandes valores
e escondem um egocentrismo que torna impossível
cultivar uma vida sadia e feliz em família.
146. Entretanto, se uma paixão acompanha o
acto livre, pode manifestar a profundidade dessa
opção. O amor matrimonial leva a procurar que
toda a vida emotiva se torne um bem para a família
e esteja ao serviço da vida em comum. A
maturidade chega a uma família, quando a vida
emotiva dos seus membros se transforma numa
140 Cf. Tomás de Aquino, Summa theologiae, I-II, q. 24, art. 1.
112
sensibilidade que não domina nem obscurece as
grandes opções e valores, mas segue a sua liberdade,141
brota dela, enriquece-a, embeleza-a e torna-a
mais harmoniosa para bem de todos.
Deus ama a alegria dos seus filhos
147. Isto requer um caminho pedagógico, um
processo que inclui renúncias: é uma convicção
da Igreja, que muitas vezes foi rejeitada pelo mundo
como se fosse inimiga da felicidade humana.
Bento XVI regista esta crítica com muita clareza:
«Com os seus mandamentos e proibições, a Igreja
não nos torna porventura amarga a coisa mais
bela da vida? Porventura não assinala ela proibi-
ções precisamente onde a alegria, preparada para
nós pelo Criador, nos oferece uma felicidade que
nos faz pressentir algo do Divino?»142 Mas ele
responde que, embora não tenham faltado exageros
ou ascetismos extraviados no cristianismo,
a doutrina oficial da Igreja, fiel à Sagrada Escritura,
não rejeitou «o eros enquanto tal, mas declarou
guerra à sua subversão devastadora, porque a
falsa divinização do eros (…) priva-o da sua dignidade,
desumaniza-o».143
148. É necessária a educação da emotividade e
do instinto e, para isso, às vezes torna-se indis-
141 Cf. ibid., I-II, q. 59, art. 5. 142 Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 3:
AAS 98 (2006), 219-220.
143 Ibid., 4: o. c., 220.
113
pensável impormo-nos algum limite. O excesso,
o descontrole, a obsessão por um único tipo de
prazeres acabam por debilitar e combalir o pró-
prio prazer,144 e prejudicam a vida da família. Na
verdade, pode-se fazer um belo caminho com as
paixões, o que significa orientá-las cada vez mais
num projeto de auto doação e plena realização
própria que enriquece as relações interpessoais
no seio da família. Isto não implica renunciar a
momentos de intenso prazer,145 mas assumi-los
de certo modo entrelaçados com outros momentos
de dedicação generosa, espera paciente, inevitável
fadiga, esforço por um ideal. A vida em família
é tudo isto e merece ser vivida inteiramente.
149. Algumas correntes espirituais insistem em
eliminar o desejo para se libertar da dor. Mas nós
acreditamos que Deus ama a alegria do ser humano,
pois Ele criou tudo «para nosso usufruto»
(1 Tim 6, 17). Deixemos brotar a alegria à vista
da sua ternura, quando nos propõe: «Meu filho,
se tens com quê, trata-te bem. (...) Não te prives
da felicidade presente » (Sir 14, 11.14). Também
um casal de esposos corresponde à vontade de
Deus, quando segue este convite bíblico: «No dia
da felicidade, sê alegre » (Qo 7, 14). A questão é
ter a liberdade para aceitar que o prazer encontre
outras formas de expressão nos sucessivos mo-
144 Cf. Tomás de Aquino, Summa theologiae, I-II, q. 32, art. 7. 145 Cf. ibid., II-II, q. 153, art. 2, ad 2: «Abundantia delectationis
quae est in actu venereo secundum rationem ordinato, non contrariatur
medio virtutis».
114
mentos da vida, de acordo com as necessidades
do amor mútuo. Neste sentido, pode-se aceitar
a proposta de alguns mestres orientais que insistem
em ampliar a consciência, para não ficar
presos numa experiência muito limitada que nos
fecharia as perspectivas. Esta ampliação da consciência
não é a negação ou a destruição do desejo,
mas a sua dilatação e aperfeiçoamento.
A dimensão erótica do amor
150. Tudo isto nos leva a falar da vida sexual
dos esposos. O próprio Deus criou a sexualidade,
que é um presente maravilhoso para as suas
criaturas. Quando se cultiva e evita o seu descontrole,
fazemo-lo para impedir que se produza o
« depauperamento de um valor autêntico».146 São
João Paulo II rejeitou a ideia de que a doutrina
da Igreja leve a « uma negação do valor do sexo
humano» ou que o tolere simplesmente «pela
necessidade da procriação».147 A necessidade sexual
dos esposos não é objecto de menosprezo, e
«não se trata de modo algum de pôr em questão
aquela necessidade ».148
151. A quantos receiam que, com a educação
das paixões e da sexualidade, se prejudique a es-
146 João Paulo II, Catequese (22 de Outubro de 1980), 5:
Insegnamenti 3/2 (1980), 951; L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 26/X/1980), 12. 147 Ibid., 3. 148 Idem, Catequese (24 de Setembro de 1980), 4: Insegnamenti
3/2 (1980), 719; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa
de 28/IX/1980), 12.
115
pontaneidade do amor sexual, São João Paulo
II respondia que o ser humano « é também chamado
à plena e matura espontaneidade das rela-
ções», que « é o fruto gradual do discernimento
dos impulsos do próprio coração».149 É algo que
se conquista, pois todo o ser humano «deve, perseverante
e coerentemente, aprender o que é o
significado do corpo».150 A sexualidade não é um
recurso para compensar ou entreter, mas trata-se
de uma linguagem interpessoal onde o outro é
tomado a sério, com o seu valor sagrado e inviolável.
Assim, «o coração humano torna-se participante,
por assim dizer, de outra espontaneidade
».151 Neste contexto, o erotismo aparece como
uma manifestação especificamente humana da
sexualidade. Nele pode-se encontrar o «significado
esponsal do corpo e a autêntica dignidade
do dom».152 Nas suas catequeses sobre a teologia
do corpo humano, São João Paulo II ensinou que
a corporeidade sexuada « é não só fonte de fecundidade
e de procriação», mas possui « a capacidade
de exprimir o amor: exactamente aquele
amor em que o homem-pessoa se torna dom».153
O erotismo mais saudável, embora esteja ligado
149 Catequese (12 de Novembro de 1980), 2: Insegnamenti
3/2 (1980), 1133; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa
de 16/XI/1980), 12. 150 Ibid., 4. 151 Ibid., 5. 152 Ibid., 1. 153 Catequese (16 de Janeiro de 1980), 1: Insegnamenti 3/1
(1980), 151; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
20/I/1980), 12.
116
a uma busca de prazer, supõe a admiração e, por
isso, pode humanizar os impulsos.
152. Assim, não podemos, de maneira alguma,
entender a dimensão erótica do amor como um
mal permitido ou como um peso tolerável para
o bem da família, mas como dom de Deus que
embeleza o encontro dos esposos. Tratando-se
de uma paixão sublimada pelo amor que admira
a dignidade do outro, torna-se uma « afirmação
amorosa plena e cristalina », mostrando-nos de
que maravilhas é capaz o coração humano, e assim,
por um momento, «sente-se que a existência
humana foi um sucesso».154
Violência e manipulação
153. No contexto desta visão positiva da sexualidade,
é oportuno apresentar o tema na sua
integridade e com um são realismo. Pois não podemos
ignorar que muitas vezes a sexualidade se
despersonaliza e enche de patologias, de modo
que «se torna cada vez mais ocasião e instrumento
de afirmação do próprio eu e de satisfação
egoísta dos próprios desejos e instintos».155 Neste
tempo, também a sexualidade corre grande
risco de se ver dominada pelo espírito venenoso
do « usa e joga fora ». Com frequência, o corpo
do outro é manipulado como uma coisa que se
154 Josef Pieper, Über die Liebe (Munique 2014), 174-175. 155 João Paulo II, Carta enc. Evangelium vitae (25 de Mar-
ço de 1995), 23: AAS 87 (1995), 427.
117
conserva enquanto proporciona satisfação e se
despreza quando perde atractivo. Podem-se porventura
ignorar ou dissimular as formas constantes
de domínio, prepotência, abuso, perversão e
violência sexual que resultam duma distorção do
significado da sexualidade e sepultam a dignidade
dos outros e o apelo ao amor sob uma obscura
procura de si mesmo?
154. Nunca é demais lembrar que, mesmo no
matrimónio, a sexualidade pode tornar-se fonte
de sofrimento e manipulação. Por isso, devemos
reafirmar, claramente, que « um acto conjugal imposto
ao próprio cônjuge, sem consideração pelas
suas condições e pelos seus desejos legítimos,
não é um verdadeiro acto de amor e nega, por
isso mesmo, uma exigência de recta ordem moral,
nas relações entre os esposos».156 Os actos
próprios da união sexual dos cônjuges correspondem
à natureza da sexualidade querida por
Deus, se forem vividos «de modo autenticamente
humano».157 Por isso, São Paulo exortava: «Que
ninguém, nesta matéria, defraude e se aproveite
do seu irmão» (1 Ts 4, 6). E não obstante ele escrevesse
numa época em que dominava uma cultura
patriarcal, na qual a mulher era considerada
um ser completamente subordinado ao homem,
todavia ensinou que a sexualidade deve ser uma
156 Paulo VI, Carta enc. Humanae vitae (25 de Julho de
1968), 13: AAS 60 (1968), 489. 157 Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no
mundo contemporâneo Gaudium et spes, 49.
118
questão a discutir entre os cônjuges: levantou a
possibilidade de adiar as relações sexuais por algum
tempo, mas «de mútuo acordo» (1 Cor 7, 5).
155. São João Paulo II fez uma advertência
muito subtil, quando disse que o homem e a mulher
são « ameaçados pela insaciabilidade ».158 Por
outras palavras, são chamados a uma união cada
vez mais intensa, mas correm o risco de pretender
apagar as diferenças e a distância inevitável que
existe entre os dois. Com efeito, cada um possui
uma dignidade própria e irrepetível. Quando o
bem precioso da pertença recíproca se transforma
em domínio, «muda essencialmente a estrutura
de comunhão na relação interpessoal».159 Na
lógica do domínio, o dominador acaba também
negando a sua própria dignidade160 e, em última
análise, deixa «de identificar-se subjectivamente
com o próprio corpo»,161 porque lhe tira todo o
significado. Vive o sexo como evasão de si mesmo
e como renúncia à beleza da união.
156. É importante deixar claro a rejeição de
toda a forma de submissão sexual. Por isso, con-
158 Catequese (18 de Junho de 1980), 5: Insegnamenti 3/1
(1980), 1778; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
29/VI/1980), 18. 159 Ibid., 6. 160 Cf. Idem, Catequese (30 de Julho de 1980), 1: Insegnamenti
3/2 (1980), 311; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa
de 03/VIII/1980), 12. 161 Idem, Catequese (8 de Abril de 1981), 3: Insegnamenti 4/1
(1981), 904; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
12/IV/1981), 12.
119
vém evitar toda a interpretação inadequada do
texto da Carta aos Efésios, onde se pede que « as
mulheres [sejam submissas] aos seus maridos»
(Ef 5, 22). São Paulo exprime-se em categorias
culturais próprias daquela época; nós não devemos
assumir esta roupagem cultural, mas a mensagem
revelada que subjaz ao conjunto da perí-
cope. Retomemos a sábia explicação de São João
Paulo II: «O amor exclui todo o género de submissão,
pelo qual a mulher se tornasse serva ou
escrava do marido (...). A comunidade ou unidade,
que devem constituir por causa do matrimó-
nio, realiza-se através de uma recíproca doação,
que é também submissão mútua ».162 Por isso, se
diz que « devem também os maridos amar as suas
mulheres, como o seu próprio corpo» (Ef 5, 28).
Na realidade, o texto bíblico convida a superar
o cómodo individualismo para viver disponíveis
aos outros: « Submetei-vos uns aos outros» (Ef 5,
21). Entre os cônjuges, esta recíproca «submissão»
adquire um significado especial, devendo-se
entender como uma pertença mútua livremente
escolhida, com um conjunto de características de
fidelidade, respeito e solicitude. A sexualidade
está ao serviço desta amizade conjugal de modo
inseparável, porque tende a procurar que o outro
viva em plenitude.
157. Entretanto a rejeição das distorções da sexualidade
e do erotismo nunca deveria levar-nos
162 Catequese (11 de Agosto de 1982), 4: Insegnamenti 5/3
(1982), 205-206; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa
de 15/VIII/1982), 8.
120
ao seu desprezo nem ao seu descuido. O ideal
do matrimónio não pode configurar-se apenas
como uma doação generosa e sacrificada, onde
cada um renuncia a qualquer necessidade pessoal
e se preocupa apenas por fazer o bem ao
outro, sem satisfação alguma. Lembremo-nos de
que um amor verdadeiro também sabe receber
do outro, é capaz de se aceitar como vulnerável
e necessitado, não renuncia a receber, com gratidão
sincera e feliz, as expressões corporais do
amor na carícia, no abraço, no beijo e na união
sexual. Bento XVI era claro a este respeito: « Se
o homem aspira a ser somente espírito e quer
rejeitar a carne como uma herança apenas animalesca,
então espírito e corpo perdem a sua dignidade
».163 Por esta razão, «o homem também não
pode viver exclusivamente no amor oblativo, descendente.
Não pode limitar-se sempre a dar, deve
também receber. Quem quer dar amor, deve ele
mesmo recebê-lo em dom».164 Em todo o caso,
isto supõe ter presente que o equilíbrio humano
é frágil, sempre permanece algo que resiste a ser
humanizado e que, a qualquer momento, pode
fugir-nos de mão novamente, recuperando as
suas tendências mais primitivas e egoístas.
Matrimónio e virgindade
158. «Muitas pessoas, que vivem sem se casar,
não só se dedicam à sua família de origem,
163 Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 5:
AAS 98 (2006), 221.
164 Ibid., 7: o. c., 223-224.
121
mas muitas vezes realizam grandes serviços no
seu círculo de amigos, na comunidade eclesial e
na vida profissional (...). Muitos colocam os seus
talentos também ao serviço da comunidade cristã
sob a forma de assistência caritativa e voluntariado.
Temos ainda aqueles que não se casam,
porque consagram a vida por amor de Cristo e
dos irmãos. Com a sua dedicação, é extraordinariamente
enriquecida a família, na Igreja e na
sociedade ».165
159. A virgindade é uma forma de amor. Como
sinal, recorda-nos a solicitude pelo Reino, a urgência
de entregar-se sem reservas ao serviço da
evangelização (cf. 1 Cor 7, 32) e é um reflexo da
plenitude do Céu, onde «nem os homens terão
mulheres, nem as mulheres, maridos» (Mt 22,
30). São Paulo recomendava a virgindade, porque
esperava para breve o regresso de Jesus Cristo
e queria que todos se concentrassem apenas
na evangelização: «O tempo é breve » (1 Cor 7,
29). Contudo deixa claro que era uma opinião
pessoal e um desejo dele (cf. 1 Cor 7, 6-8), não
uma exigência de Cristo: «Não tenho nenhum
preceito do Senhor» (1 Cor 7, 25). Ao mesmo
tempo reconhecia o valor de ambas as vocações:
«Cada um recebe de Deus o seu próprio dom,
um de uma maneira, outro de outra » (1 Cor 7, 7).
Neste sentido, diz São João Paulo II que os textos
bíblicos «não oferecem motivo para sustentar
nem a “inferioridade” do matrimónio, nem a
165 Relatio Finalis 2015, 22.
122
“superioridade” da virgindade ou do celibato»166
devido à abstinência sexual. Em vez de se falar
da superioridade da virgindade sob todos os aspectos,
parece mais apropriado mostrar que os
diferentes estados de vida são complementares,
de tal modo que um pode ser mais perfeito num
sentido e outro pode sê-lo a partir dum ponto de
vista diferente. Por exemplo, Alexandre de Hales
afirmava que, em certo sentido, o matrimónio
pode-se considerar superior aos restantes sacramentos,
porque simboliza algo tão grande como
« a união de Cristo com a Igreja ou a união da
natureza divina com a humana ».167
160. Portanto «não se trata de diminuir o valor
do matrimónio em favor da continência »168 e
«não existe fundamento algum para uma suposta
contraposição (...). Se, considerando uma certa
tradição teológica, se fala do estado de perfeição
(status perfectionis), não é por motivo da continência
mesma, mas a propósito do conjunto da vida
fundada sobre os conselhos evangélicos».169 Entretanto
uma pessoa casada pode viver a caridade
166 Catequese (14 de Abril de 1982), 1: Insegnamenti 5/1
(1982), 1176; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
18/IV/1982), 12. 167 Glossa in quatuor libros sententiarum Petri Lombardi, IV,
XXVI, 2 (Quaracchi 1957, 446). 168 João Paulo II, Catequese (7 de Abril de 1982), 2: Insegnamenti
5/1 (1982), 1127; L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 11/IV/1982), 12. 169 Idem, Catequese (14 de Abril de 1982), 3: Insegnamenti
5/1 (1982), 1177; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa
de 18/IV/1982), 12.
123
num grau altíssimo. E assim « chega àquela perfeição
que nasce da caridade, mediante a fidelidade
ao espírito dos referidos conselhos. Tal perfei-
ção é possível e acessível a cada homem».170
161. A virgindade tem o valor simbólico do
amor que não necessita de possuir o outro, reflectindo
assim a liberdade do Reino dos Céus. É um
convite para os esposos viverem o seu amor conjugal
na perspectiva do amor definitivo a Cristo,
como um caminho comum rumo à plenitude do
Reino. Por sua vez, o amor dos esposos apresenta
outros valores simbólicos: por um lado, é reflexo
peculiar da Trindade, porque a Trindade é unidade
plena na qual existe também a distinção. Além
disso, a família é um sinal cristológico, porque
mostra a proximidade de Deus que compartilha
a vida do ser humano unindo-Se-lhe na encarna-
ção, na cruz e na ressurreição: cada cônjuge torna-se
« uma só carne » com o outro e oferece-se a
si mesmo para partilhar tudo com ele até ao fim.
Enquanto a virgindade é um sinal « escatológico»
de Cristo ressuscitado, o matrimónio é um sinal
«histórico» para nós que caminhamos na terra,
um sinal de Cristo terreno que aceitou unir-Se a
nós e Se deu até ao derramamento do seu sangue.
A virgindade e o matrimónio são – e devem
ser – modalidades diferentes de amar, porque «o
homem não pode viver sem amor. Ele permanece
para si próprio um ser incompreensível e
170 Ibidem.
124
a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for
revelado o amor».171
162. O celibato corre o risco de ser uma có-
moda solidão, que dá liberdade para se mover
autonomamente, mudar de local, tarefa e opção,
dispor do seu próprio dinheiro, conviver com as
mais variadas pessoas segundo a atracção do momento.
Neste caso, sobressai o testemunho das
pessoas casadas. Aqueles que foram chamados à
virgindade podem encontrar, nalguns casais de
esposos, um sinal claro da fidelidade generosa e
indestrutível de Deus à sua Aliança, que pode estimular
os seus corações a uma disponibilidade
mais concreta e oblativa. Com efeito, há pessoas
casadas que mantêm a sua fidelidade, quando o
cônjuge se tornou fisicamente desagradável ou
deixou de satisfazer as suas necessidades; e fazem-no,
não obstante muitas ocasiões os convidarem
à infidelidade ou ao abandono. Uma mulher
pode cuidar do marido doente e ali, ao pé
da Cruz, volta a oferecer o «sim» do seu amor
até à morte. Em semelhante amor, manifesta-se
de forma esplêndida a dignidade de quem ama,
dignidade como reflexo da caridade, já que é mais
próprio da caridade amar do que ser amado.172
Uma capacidade de serviço oblativo e carinhoso
pode ser observada também em muitas famílias
171 Idem, Carta enc. Redemptor hominis (4 de Março de
1979), 10: AAS 71 (1979), 274. 172 Cf. Tomás de Aquino, Summa theologiae, II-II, q. 27,
art. 1.
125
com filhos difíceis e até ingratos. Isto faz desses
pais um sinal do amor livre e desinteressado de
Jesus. Tudo isto se torna, para as pessoas celibatárias,
um convite a viverem a sua dedicação ao
Reino com maior generosidade e disponibilidade.
Hoje, a secularização ofuscou o valor duma união
para toda a vida e debilitou a riqueza da dedica-
ção matrimonial, pelo que « é preciso aprofundar
os aspectos positivos do amor conjugal».173
A transformação do amor
163. O alongamento da vida provocou algo
que não era comum noutros tempos: a relação
íntima e a mútua pertença devem ser mantidas
durante quatro, cinco ou seis décadas, e isto gera
a necessidade de renovar repetidas vezes a recíproca
escolha. Talvez o cônjuge já não esteja
apaixonado com um desejo sexual intenso que
o atraia para outra pessoa, mas sente o prazer
de lhe pertencer e que esta pessoa lhe pertença,
de saber que não está só, de ter um « cúmplice »
que conhece tudo da sua vida e da sua história e
tudo partilha. É o companheiro no caminho da
vida, com quem se pode enfrentar as dificuldades
e gozar das coisas lindas. Também isto gera
uma satisfação, que acompanha a decisão própria
do amor conjugal. Não é possível prometer que
teremos os mesmos sentimentos durante a vida
inteira; mas podemos ter um projecto comum
173 Pont. Conselho para a Família, Família, matrimónio e
« uniões de facto» (26 de Julho de 2000), 40.
126
estável, comprometer-nos a amar-nos e a viver
unidos até que a morte nos separe, e viver sempre
uma rica intimidade. O amor, que nos prometemos,
supera toda a emoção, sentimento ou
estado de ânimo, embora possa incluí-los. É um
querer-se bem mais profundo, com uma decisão
do coração que envolve toda a existência. Assim,
no meio dum conflito não resolvido e ainda que
muitos sentimentos confusos girem pelo cora-
ção, mantém-se viva dia-a-dia a decisão de amar,
de se pertencer, de partilhar a vida inteira e continuar
a amar-se e perdoar-se. Cada um dos dois
realiza um caminho de crescimento e mudança
pessoal. No curso de tal caminho, o amor celebra
cada passo, cada etapa nova.
164. Na história dum casal, a aparência física
muda, mas isso não é motivo para que a atracção
amorosa diminua. Um cônjuge enamora-se pela
pessoa inteira do outro, com uma identidade pró-
pria, e não apenas pelo corpo, embora este corpo,
independentemente do desgaste do tempo,
nunca deixe de expressar de alguma forma aquela
identidade pessoal que cativou o coração. Quando
os outros já não podem reconhecer a beleza
desta identidade, o cônjuge enamorado continua
a ser capaz de a individuar com o instinto do
amor, e o carinho não desaparece. Reitera a sua
decisão de lhe pertencer, volta a escolhê-lo, e exprime
esta escolha numa proximidade fiel e cheia
de ternura. A nobreza da sua opção pelo outro,
por ser intensa e profunda, desperta uma nova
127
forma de emoção no cumprimento desta missão
conjugal. Com efeito, « a emoção provocada por
outro ser humano como pessoa (...) não tende,
de per si, para o acto conjugal».174 Adquire outras
expressões sensíveis, porque o amor « é uma única
realidade, embora com distintas dimensões; caso
a caso, pode uma ou outra dimensão sobressair
mais».175 O vínculo encontra novas modalidades
e exige a decisão de reatá-lo repetidamente; e não
só para o conservar, mas para o fazer crescer. É o
caminho de se construir dia após dia. Entretanto
nada disto é possível, se não se invoca o Espírito
Santo, se não se clama todos os dias pedindo a
sua graça, se não se procura a sua força sobrenatural,
se não Lhe fazemos presente o desejo
de que derrame o seu fogo sobre o nosso amor
para o fortalecer, orientar e transformar em cada
nova situação.
174 João Paulo II, Catequese (31 de Outubro de 1984), 6:
Insegnamenti 7/2 (1984), 1072; L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 04/XI/1984), 12. 175 Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro
de 2005), 8: AAS 98 (2006), 224.
129
CAPÍTULO V
O AMOR QUE SE TORNA FECUNDO
165. O amor sempre dá vida. Por isso, o amor
conjugal «não se esgota no interior do próprio
casal (...). Os cônjuges, enquanto se doam entre
si, doam para além de si mesmos a realidade do
filho, reflexo vivo do seu amor, sinal permanente
da unidade conjugal e síntese viva e indissociável
do ser pai e mãe ».176
Acolher uma nova vida
166. A família é o âmbito não só da geração,
mas também do acolhimento da vida que chega
como um presente de Deus. Cada nova vida
«permite-nos descobrir a dimensão mais gratuita
do amor, que nunca cessa de nos surpreender.
É a beleza de ser amado primeiro: os filhos são
amados antes de chegar».177 Isto mostra-nos o
primado do amor de Deus que sempre toma a
iniciativa, porque os filhos «são amados antes de
ter feito algo para o merecer».178 Mas, «desde o
início, numerosas crianças são rejeitadas, abando-
176 João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro
de 1981), 14: AAS 74 (1982), 96. 177 Francisco, Catequese (11 de Fevereiro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 12/II/2015), 16. 178 Ibidem.
130
nadas e subtraídas à sua infância e ao seu futuro.
Alguns ousam dizer, como que para se justificar,
que foi um erro tê-las feito vir ao mundo. Isto é
vergonhoso! (...) Que aproveitam as solenes declarações
dos direitos do homem e dos direitos
da criança, se depois punimos as crianças pelos
erros dos adultos?»179 Se uma criança chega ao
mundo em circunstâncias não desejadas, os pais
ou os outros membros da família devem fazer
todo o possível para aceitá-la como dom de Deus
e assumir a responsabilidade de a acolher com
magnanimidade e carinho. Com efeito, « quando
se trata de crianças que vêm ao mundo, nenhum
sacrifício dos adultos será julgado demasiado
oneroso ou grande, contanto que se evite que
uma criança chegue a pensar que é um erro, que
não vale nada e que está abandonada aos infortú-
nios da vida e à prepotência dos homens».180 O
dom dum novo filho, que o Senhor confia ao pai
e à mãe, tem início com o seu acolhimento, continua
com a sua guarda ao longo da vida terrena
e tem como destino final a alegria da vida eterna.
Um olhar sereno voltado para a realização final
da pessoa humana tornará os pais ainda mais
conscientes do precioso dom que lhes foi confiado;
de facto, Deus concede-lhes fazer a escolha
do nome com que Ele chamará cada um dos seus
filhos por toda a eternidade.181
179 Idem, Catequese (8 de Abril de 2015): L’Osservatore Romano
(ed. semanal portuguesa de 09/IV/2015), 16.
180 Ibidem. 181 «Todos tenham bem presente que a vida humana e a
131
167. As famílias numerosas são uma alegria para
a Igreja. Nelas, o amor manifesta a sua fecundidade
generosa. Isto não implica esquecer uma sã advertência
de São João Paulo II, quando explicava
que a paternidade responsável não é «procriação
ilimitada ou falta de consciência acerca daquilo
que é necessário para o crescimento dos filhos,
mas é, antes, a faculdade que os cônjuges têm de
usar a sua liberdade inviolável de modo sábio e
responsável, tendo em consideração tanto as realidades
sociais e demográficas, como a sua própria
situação e os seus legítimos desejos».182
O amor na expectativa própria da gravidez
168. A gravidez é um período difícil, mas também
um tempo maravilhoso. A mãe colabora
com Deus, para que se verifique o milagre duma
nova vida. A maternidade surge duma «particular
potencialidade do organismo feminino, que, com
a sua peculiaridade criadora, serve para a concep-
ção e a geração do ser humano».183 Cada mulher
missão de a transmitir não se limitam a este mundo, nem podem
ser medidas ou compreendidas unicamente em função dele,
mas que estão sempre relacionadas com o eterno destino do
homem» (Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no
mundo contemporâneo Gaudium et spes, 51). 182 Carta à Secretária-Geral da Conferência Internacional da
ONU sobre População e Desenvolvimento (18 de Março de 1994):
Insegnamenti 17/1 (1994), 750-751; L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 02/IV/1994), 4. 183 João Paulo II, Catequese (12 de Março de 1980), 3:
Insegnamenti 3/1 (1980), 543; L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 16/III/1980), 12.
132
participa do «mistério da criação, que se renova
na geração humana ».184 Assim diz o Salmo:
Senhor, «formaste-me no seio de minha mãe »
(Sl 139/138, 13). Cada criança, que se forma dentro
de sua mãe, é um projecto eterno de Deus Pai
e do seu amor eterno: «Antes de te haver formado
no ventre materno, Eu já te conhecia; antes
que saísses do seio de tua mãe, Eu te consagrei»
(Jr 1, 5). Cada criança está no coração de Deus
desde sempre e, no momento em que é concebida,
realiza-se o sonho eterno do Criador. Pensemos
quanto vale o embrião, desde que é concebido! É
preciso contemplá-lo com este olhar amoroso do
Pai, que vê para além de toda a aparência.
169. A mulher grávida pode participar deste
projecto de Deus, sonhando o seu filho: «Toda
a mãe e todo o pai sonharam o seu filho durante
nove meses. (...) Não é possível uma família sem
o sonho. Numa família, quando se perde a capacidade
de sonhar, os filhos não crescem, o amor
não cresce; a vida debilita-se e apaga-se ».185 Neste
sonho, para um casal cristão, aparece necessariamente
o baptismo. Os pais preparam-no com
a sua oração, confiando o filho a Jesus já antes do
seu nascimento.
170. Hoje, com os progressos feitos pela ciência,
é possível saber de antemão a cor que terá o
184 Idem. 185 Francisco, Discurso no encontro com as famílias, em Manila
(16 de Janeiro de 2015): AAS 107 (2015), 176.
133
cabelo da criança e as doenças que poderá ter no
futuro, porque todas as características somáticas
daquela pessoa estão inscritas no seu código genético
já no estado embrionário. Mas, conhecê-
-lo em plenitude, só consegue o Pai do Céu que
o criou: o mais precioso, o mais importante só
Ele conhece, pois é Ele que sabe quem é aquela
criança, qual é a sua identidade mais profunda.
A mãe, que o traz no ventre, precisa de pedir luz
a Deus para poder conhecer em profundidade o
seu próprio filho e saber esperá-lo como ele é.
Alguns pais sentem que o seu filho não chega no
melhor momento; faz-lhes falta pedir ao Senhor
que os cure e fortaleça para aceitarem plenamente
aquele filho, para o esperarem com todo
o coração. É importante que aquela criança se
sinta esperada. Não é um complemento ou uma
solução para uma aspiração pessoal, mas um ser
humano, com um valor imenso, e não pode ser
usado para benefício próprio. Por conseguinte,
não é importante se esta nova vida te será útil ou
não, se possui características que te agradam ou
não, se corresponde ou não aos teus projectos e
sonhos. Porque «os filhos são uma dádiva! Cada
um é único e irrepetível (...). Um filho é amado
porque é filho: não, porque é bonito ou porque é
deste modo ou daquele, mas porque é filho! Não,
porque pensa como eu, nem porque encarna as
minhas aspirações. Um filho é um filho».186 O
186 Idem, Catequese (11 de Fevereiro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 12/II/2015), 16.
134
amor dos pais é instrumento do amor de Deus
Pai, que espera com ternura o nascimento de
cada criança, aceita-a incondicionalmente e acolhe-a
gratuitamente.
171. A cada mulher grávida, quero pedir-lhe
afectuosamente: Cuida da tua alegria, que nada
te tire a alegria interior da maternidade. Aquela
criança merece a tua alegria. Não permitas que os
medos, as preocupações, os comentários alheios
ou os problemas apaguem esta felicidade de ser
instrumento de Deus para trazer uma nova vida
ao mundo. Ocupa-te daquilo que é preciso fazer
ou preparar, mas sem obsessões, e louva como
Maria: «A minha alma glorifica o Senhor e o meu
espírito se alegra em Deus, meu Salvador. Porque
pôs os olhos na humildade da sua serva » (Lc 1,
46-48). Vive, com sereno entusiasmo, no meio dos
teus incómodos e pede ao Senhor que guarde a tua
alegria para poderes transmiti-la ao teu filho.
Amor de mãe e de pai
172. «Recém-nascidas, as crianças começam a
receber em dom, juntamente com o alimento e
os cuidados, a confirmação das qualidades espirituais
do amor. Os gestos de amor passam através
do dom do seu nome pessoal, da partilha da linguagem,
das intenções dos olhares, das ilumina-
ções dos sorrisos. Assim, aprendem que a beleza
do vínculo entre os seres humanos mostra a nossa
alma, procura a nossa liberdade, aceita a diversidade
do outro, reconhece-o e respeita-o como
135
interlocutor. (...) E isto é amor, que contém uma
centelha do amor de Deus».187 Toda a criança tem
direito a receber o amor de uma mãe e de um pai,
ambos necessários para o seu amadurecimento
íntegro e harmonioso. Como disseram os bispos
da Austrália, ambos « contribuem, cada um à sua
maneira, para o crescimento duma criança. Respeitar
a dignidade duma criança significa afirmar
a sua necessidade e o seu direito natural a ter uma
mãe e um pai».188 Não se trata apenas do amor
do pai e da mãe separadamente, mas também do
amor entre eles, captado como fonte da própria
existência, como ninho acolhedor e como fundamento
da família. Caso contrário, o filho parece
reduzir-se a uma posse caprichosa. Ambos,
homem e mulher, pai e mãe, são « cooperadores
do amor de Deus criador e como que os seus
intérpretes».189 Mostram aos seus filhos o rosto
materno e o rosto paterno do Senhor. Além disso,
é juntos que eles ensinam o valor da reciprocidade,
do encontro entre seres diferentes, onde
cada um contribui com a sua própria identidade
e sabe também receber do outro. Se, por alguma
razão inevitável, falta um dos dois, é importante
procurar alguma maneira de o compensar, para
favorecer o adequado amadurecimento do filho.
187 Idem, Catequese (14 de Outubro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 15/X/2015), 12. 188 Conferência dos Bispos Católicos da Austrália,
Carta pastoral Don’t Mess with Marriage (24 de Novembro de
2015), 11. 189 Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no
mundo contemporâneo Gaudium et spes, 50.
136
173. O sentimento de ser órfãos, que hoje
experimentam muitas crianças e jovens, é mais
profundo do que pensamos. Hoje reconhecemos
como plenamente legítimo, e até desejável, que
as mulheres queiram estudar, trabalhar, desenvolver
as suas capacidades e ter objectivos pessoais.
Mas, ao mesmo tempo, não podemos ignorar
a necessidade que as crianças têm da presença
materna, especialmente nos primeiros meses de
vida. A realidade é que « a mulher apresenta-se
diante do homem como mãe, sujeito da nova
vida humana, que nela é concebida e se desenvolve,
e dela nasce para o mundo».190 O enfraquecimento
da presença materna, com as suas
qualidades femininas, é um risco grave para a
nossa terra. Aprecio o feminismo, quando não
pretende a uniformidade nem a negação da maternidade.
Com efeito, a grandeza das mulheres
implica todos os direitos decorrentes da sua dignidade
humana inalienável, mas também do seu
génio feminino, indispensável para a sociedade.
As suas capacidades especificamente femininas
– em particular a maternidade – conferem-lhe
também deveres, já que o seu ser mulher implica
também uma missão peculiar nesta terra, que a
sociedade deve proteger e preservar para bem de
todos.191
190 João Paulo II, Catequese (12 de Março de 1980), 2:
Insegnamenti 3/1 (1980), 542; L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 16/III/1980), 12. 191 Cf. Idem, Carta ap. Mulieris dignitatem (15 de Agosto de
1988), 30-31: AAS 80 (1988), 1726-1729.
137
174. De facto, « as mães são o antídoto mais
forte contra o propagar-se do individualismo
egoísta. (...) São elas que testemunham a beleza
da vida ».192 Sem dúvida, « uma sociedade sem
mães seria uma sociedade desumana, porque as
mães sabem testemunhar sempre, mesmo nos
piores momentos, a ternura, a dedicação, a força
moral. As mães transmitem, muitas vezes, também
o sentido mais profundo da prática religiosa:
nas primeiras orações, nos primeiros gestos
de devoção que uma criança aprende (...). Sem as
mães, não somente não haveria novos fiéis, mas
a fé perderia boa parte do seu calor simples e
profundo. (...) Queridas mães, obrigado, obrigado
por aquilo que sois na família e pelo que dais
à Igreja e ao mundo».193
175. A mãe, que ampara o filho com a sua ternura
e compaixão, ajuda a despertar nele a confiança,
a experimentar que o mundo é um lugar
bom que o acolhe, e isto permite desenvolver
uma auto-estima que favorece a capacidade de
intimidade e a empatia. Por sua vez, a figura do
pai ajuda a perceber os limites da realidade, caracterizando-se
mais pela orientação, pela saída
para o mundo mais amplo e rico de desafios,
pelo convite a esforçar-se e lutar. Um pai com
uma clara e feliz identidade masculina, que por
sua vez combine no seu trato com a esposa o
192 Francisco, Catequese (7 de Janeiro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 8/I/2015), 12. 193 Ibidem.
138
carinho e o acolhimento, é tão necessário como
os cuidados maternos. Há funções e tarefas flexí-
veis, que se adaptam às circunstâncias concretas
de cada família, mas a presença clara e bem definida
das duas figuras, masculina e feminina, cria
o âmbito mais adequado para o amadurecimento
da criança.
176. Diz-se que a nossa sociedade é uma «sociedade
sem pais». Na cultura ocidental, a figura
do pai estaria simbolicamente ausente, distorcida,
desvanecida. Até a virilidade pareceria posta
em questão. Verificou-se uma compreensível
confusão, já que, «num primeiro momento, isto
foi sentido como uma libertação: libertação do
pai-patrão, do pai como representante da lei que
se impõe de fora, do pai como censor da felicidade
dos filhos e impedimento à emancipação e
à autonomia dos jovens. Por vezes, havia casas
em que no passado reinava o autoritarismo, em
certos casos até a prepotência ».194 Mas, « como
acontece muitas vezes, passa-se de um extremo
ao outro. O problema nos nossos dias não parece
ser tanto a presença invasora do pai, mas sim a
sua ausência, o facto de não estar presente. Por
vezes o pai está tão concentrado em si mesmo e
no próprio trabalho ou então nas próprias realizações
individuais que até se esquece da família.
E deixa as crianças e os jovens sozinhos».195 A
194 Idem, Catequese (28 de Janeiro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 29/I/2015), 16. 195 Ibidem.
139
presença paterna e, consequentemente, a sua autoridade
são afectadas também pelo tempo cada
vez maior que se dedica aos meios de comunicação
e à tecnologia da distracção. Além disso,
hoje, a autoridade é olhada com suspeita e os
adultos são duramente postos em discussão. Eles
próprios abandonam as certezas e, por isso, não
dão orientações seguras e bem fundamentadas
aos seus filhos. Não é saudável que sejam invertidas
as funções entre pais e filhos: prejudica o
processo adequado de amadurecimento que as
crianças precisam de fazer e nega-lhes um amor
capaz de as orientar e que as ajude a maturar.196
177. Deus coloca o pai na família, para que, com
as características preciosas da sua masculinidade,
« esteja próximo da esposa, para compartilhar
tudo, alegrias e dores, dificuldades e esperanças.
E esteja próximo dos filhos no seu crescimento:
quando brincam e quando se aplicam, quando
estão descontraídos e quando se sentem angustiados,
quando se exprimem e quando permanecem
calados, quando ousam e quando têm medo,
quando dão um passo errado e quando voltam a
encontrar o caminho; pai presente, sempre. Estar
presente não significa ser controlador, porque
os pais demasiado controladores aniquilam os
filhos».197 Alguns pais sentem-se inúteis ou desnecessários,
mas a verdade é que «os filhos têm
196 Cf. Relatio Finalis 2015, 28. 197 Francisco, Catequese (4 de Fevereiro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 5/II/2015), 16.
140
necessidade de encontrar um pai que os espera
quando voltam dos seus fracassos. Farão de tudo
para não o admitir, para não o revelar, mas precisam
dele ».198 Não é bom que as crianças fiquem
sem pais e, assim, deixem de ser crianças antes
do tempo.
Fecundidade alargada
178. Àqueles que não podem ter filhos, lembramos
que «o matrimónio não foi instituído só em
ordem à procriação (...). E por isso, mesmo que
faltem os filhos, tantas vezes ardentemente desejados,
o matrimónio conserva o seu valor e indissolubilidade,
como comunidade e comunhão de
toda a vida ».199 Além disso, « a maternidade não é
uma realidade exclusivamente biológica, mas expressa-se
de diversas maneiras».200
179. A adopção é um caminho para realizar a
maternidade e a paternidade de uma forma muito
generosa, e desejo encorajar aqueles que não
podem ter filhos a alargar e abrir o seu amor conjugal
para receber quem está privado de um ambiente
familiar adequado. Nunca se arrependerão
de ter sido generosos. Adoptar é o acto de amor
que oferece uma família a quem não a tem. É importante
insistir para que a legislação possa faci-
198 Ibidem. 199 Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no
mundo contemporâneo Gaudium et spes, 50. 200 V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano
e do Caribe, Documento de Aparecida (29 de Junho de
2007), 457.
141
litar o processo de adopção, sobretudo nos casos
de filhos não desejados, evitando assim o aborto
ou o abandono. Aqueles que assumem o desafio
de adoptar e acolhem uma pessoa de maneira
incondicional e gratuita, tornam-se mediação
do amor de Deus que diz: «Ainda que a tua mãe
chegasse a esquecer-te, Eu nunca te esqueceria »
(cf. Is 49, 15).
180. «A opção da adopção e do acolhimento exprime
uma fecundidade particular da experiência
conjugal, mesmo para além dos casos de esposos
com problemas de fertilidade (...). Ao contrário
das situações em que o filho é desejado a todo o
custo, como um direito ao próprio completamento,
a adopção e o acolhimento, rectamente compreendidos,
mostram um aspecto importante da
paternidade e da filiação ajudando a reconhecer
que os filhos, quer naturais quer adoptivos ou acolhidos,
são em si mesmos outro sujeito e é preciso
recebê-los, amá-los, cuidar deles e não apenas
trazê-los ao mundo. O interesse prevalecente da
criança deveria sempre inspirar as decisões sobre a
adopção e o acolhimento».201 Por outro lado, «deve-se
impedir o tráfico de crianças entre países e
continentes, por meio de oportunas medidas legislativas
e controle estatal».202
181. Convém lembrar-nos também de que a
procriação e a adopção não são as únicas ma-
201 Relatio Finalis 2015, 65. 202 Ibidem.
142
neiras de viver a fecundidade do amor. Mesmo
a família com muitos filhos é chamada a deixar
a sua marca na sociedade onde está inserida, desenvolvendo
outras formas de fecundidade que
são uma espécie de extensão do amor que a sustenta.
As famílias cristãs não esqueçam que « a
fé não nos tira do mundo, mas insere-nos mais
profundamente nele. (...) A cada um de nós cabe
um papel especial na preparação da vinda do Reino
de Deus».203 A família não deve imaginar-se
como um recinto fechado, procurando proteger-se
da sociedade. Não fica à espera, mas sai
de si mesma à procura de solidariedade. Assim
transforma-se num lugar de integração da pessoa
com a sociedade e num ponto de união entre o
público e o privado. Os cônjuges precisam de adquirir
consciência clara e convicta dos seus deveres
sociais. Quando isto acontece, não diminui o
carinho que os une; antes, enche-se de nova luz,
como está expresso nos seguintes versos:
«As tuas mãos são a minha carícia,
o meu despertar diário
amo-te porque tuas mãos
trabalham pela justiça.
Se te amo, é porque és
o meu amor, o meu cúmplice e tudo
e na rua, lado a lado,
somos muito mais que dois».204
203 Francisco, Discurso no encontro com as famílias, em Manila
(16 de Janeiro de 2015): AAS 107 (2015), 178. 204 Mário Benedetti, «Te quiero», in Poemas de otros
(Buenos Aires 1993), 316.
143
182. Nenhuma família pode ser fecunda, se se
concebe como demasiado diferente ou «separada
». Para evitar este risco, lembremo-nos que a
família de Jesus, cheia de graça e sabedoria, não
era vista como uma família « estranha », como um
lar alheado e distante da gente. Por isso mesmo
as pessoas sentiram dificuldade em reconhecer a
sabedoria de Jesus e diziam: «De onde é que isto
lhe vem? (…) Não é Ele o carpinteiro, o filho
de Maria?» (Mc 6, 2.3). «Não é Ele o filho do
carpinteiro?» (Mt 13, 55). Isto confirma que era
uma família simples, próxima de todos, integrada
normalmente na povoação. E Jesus também
não cresceu numa relação fechada e exclusiva
com Maria e José, mas de bom grado movia-se
na família alargada, onde encontrava os parentes
e os amigos. Isto explica por que, quando regressavam
de Jerusalém, os seus pais admitissem a
possibilidade de o Menino de doze anos vagar
pela caravana um dia inteiro, ouvindo as histórias
e partilhando as preocupações de todos: «Pensando
que Ele Se encontrava na caravana, fizeram
um dia de viagem» (Lc 2, 44). Mas, às vezes,
acontece que algumas famílias cristãs, pela linguagem
que usam, a maneira de dizer as coisas, o
estilo do seu tratamento, a repetição constante de
dois ou três assuntos, são vistas como distantes,
separadas da sociedade, e até os próprios parentes
se sentem desprezados ou julgados por elas.
183. Um casal de esposos, que experimenta a
força do amor, sabe que este amor é chamado
144
a sarar as feridas dos abandonados, estabelecer
a cultura do encontro, lutar pela justiça. Deus
confiou à família o projecto de tornar «doméstico»
o mundo,205 de modo que todos cheguem
a sentir cada ser humano como um irmão: «Um
olhar atento à vida quotidiana dos homens e das
mulheres de hoje demonstra imediatamente a necessidade
que há, em toda a parte, duma vigorosa
injecção de espírito familiar. (...) Não só a organização
da vida comum encalha cada vez mais
numa burocracia totalmente alheia aos vínculos
humanos fundamentais, mas até o costume social
e político mostra frequentemente sinais de degradação».206
Pelo contrário, as famílias magnâ-
nimas e solidárias abrem espaço aos pobres, são
capazes de tecer uma amizade com aqueles que
estão a viver pior do que elas. Se realmente têm
a peito o Evangelho, não podem esquecer o que
diz Jesus: « Sempre que fizestes isto a um destes
meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o
fizestes» (Mt 25, 40). Em última análise, vivem o
que nos é pedido, de forma tão eloquente, neste
texto: «Quando deres um almoço ou um jantar,
não convides os teus amigos, nem os teus irmãos,
nem os teus parentes, nem os teus vizinhos ricos;
não vão eles também convidar-te, por sua vez,
e assim retribuir-te. Quando deres um banque-
205 Cf. Francisco, Catequese (16 de Setembro de 2015):
L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 17/IX/2015),
20. 206 Idem, Catequese (7 de Outubro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 08/X/2015), 24.
145
te, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os
cegos. E serás feliz » (Lc 14, 12-14). Serás feliz!
Aqui está o segredo duma família feliz.
184. Com o testemunho e também com a palavra,
as famílias falam de Jesus aos outros, transmitem
a fé, despertam o desejo de Deus e mostram
a beleza do Evangelho e do estilo de vida
que nos propõe. Assim os esposos cristãos pintam
o cinzento do espaço público, colorindo-o
de fraternidade, sensibilidade social, defesa das
pessoas frágeis, fé luminosa, esperança activa. A
sua fecundidade alarga-se, traduzindo-se em mil
e uma maneiras de tornar o amor de Deus presente
na sociedade.
Distinguir o Corpo
185. Nesta linha, convém tomar muito a sé-
rio um texto bíblico que habitualmente é interpretado
fora do seu contexto ou duma maneira
muito geral, pelo que é possível negligenciar o
seu sentido mais imediato e directo, que é marcadamente
social. Trata-se da primeira Carta aos
Coríntios (11, 17-34), onde São Paulo enfrenta
uma situação vergonhosa da comunidade. Nela,
algumas pessoas facultosas tendiam a discriminar
os pobres, e isto verificava-se mesmo na ágape
que acompanhava a celebração da Eucaristia.
Enquanto os ricos se deleitavam com seus manjares,
os pobres olhavam e passavam fome: «Enquanto
um passa fome, outro fica embriagado.
Porventura não tendes casas para comer e beber?
146
Ou desprezais a Igreja de Deus e quereis envergonhar
aqueles que nada têm?» (vv. 21-22).
186. A Eucaristia exige a integração no único
corpo eclesial. Quem se abeira do Corpo e
do Sangue de Cristo não pode ao mesmo tempo
ofender aquele mesmo Corpo, fazendo divisões
e discriminações escandalosas entre os seus
membros. Na realidade, trata-se de « distinguir»
o Corpo do Senhor, de O reconhecer com fé e
caridade, quer nos sinais sacramentais quer na
comunidade; caso contrário, come-se e bebe-se a
própria condenação (cf. v. 29). Este texto bíblico
é um sério aviso para as famílias que se fecham na
própria comodidade e se isolam e, de modo especial,
para as famílias que ficam indiferentes aos
sofrimentos das famílias pobres e mais necessitadas.
Assim, a celebração eucarística torna-se um
apelo constante a cada um para que «se examine
a si mesmo» (v. 28), a fim de abrir as portas da
própria família a uma maior comunhão com os
descartados da sociedade e depois, sim, receber
o sacramento do amor eucarístico que faz de nós
um só corpo. Não se deve esquecer que « a “mística”
do sacramento tem um carácter social».207
Quando os comungantes se mostram relutantes
em deixar-se impelir a um compromisso a favor
dos pobres e atribulados ou consentem diferentes
formas de divisão, desprezo e injustiça, recebem
indignamente a Eucaristia. Ao contrário, as
207 Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro
de 2005), 14: AAS 98 (2006), 228.
147
famílias, que se alimentam da Eucaristia com a
disposição adequada, reforçam o seu desejo de
fraternidade, o seu sentido social e o seu compromisso
para com os necessitados.
A vida na família em sentido amplo
187. O núcleo familiar restrito não deveria isolar-se
da família alargada, onde estão os pais, os
tios, os primos e até os vizinhos. Nesta família
ampla, pode haver pessoas necessitadas de ajuda,
ou pelo menos de companhia e gestos de carinho,
ou pode haver grandes sofrimentos que precisam
de conforto.208 Às vezes o individualismo
destes tempos leva a fechar-se na segurança dum
pequeno ninho e a sentir os outros como um
incómodo. Todavia este isolamento não proporciona
mais paz e felicidade, antes fecha o coração
da família e priva-a do horizonte amplo da existência.
Ser filho
188. Em primeiro lugar, falemos dos pais pró-
prios. Jesus lembrava aos fariseus que o abandono
dos pais é contrário à Lei de Deus (cf. Mc 7,
8-13). Não faz bem a ninguém perder a consciência
de ser filho. Em cada pessoa, «mesmo
quando se torna adulta ou idosa, quando passa
também a ser progenitora ou desempenha fun-
ções de responsabilidade, por baixo de tudo isso
208 Cf. Relatio Finalis 2015, 11.
148
permanece a identidade de filho. Todos somos
filhos. E isto recorda-nos sempre que a vida não
no-la demos sozinhos, mas recebemo-la. O grande
dom da vida é o primeiro presente que recebemos».209
189. Por isso, «o quarto mandamento pede aos
filhos (…) que honrem o pai e a mãe (cf. Ex 20,
12). Este mandamento vem logo após aqueles
que dizem respeito ao próprio Deus. Com efeito,
contém algo de sagrado, algo de divino, algo que
está na raiz de todos os outros tipos de respeito
entre os homens. E, na formulação bíblica do
quarto mandamento, acrescenta-se: “para que se
prolonguem os teus dias sobre a terra que o Senhor,
teu Deus, te dá”. O vínculo virtuoso entre
as gerações é garantia de futuro e de uma histó-
ria verdadeiramente humana. Uma sociedade de
filhos que não honram os pais é uma sociedade
sem honra (...). É uma sociedade destinada a encher-se
de jovens áridos e ávidos».210
190. Mas há também a outra face da moeda:
«O homem deixará o pai e a mãe » (Gn 2, 24), diz
a Palavra de Deus. Às vezes, isto não é cumprido,
nunca se chegando a assumir o matrimónio, porque
falta esta renúncia e esta dedicação. Os pais
não devem ser abandonados nem transcurados,
209 Francisco, Catequese (18 de Março de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 19/III/2015), 20. 210 Idem, Catequese (11 de Fevereiro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 12/II/2015), 16.
149
mas, para unir-se em matrimónio, é preciso deixá-los,
de modo que o novo lar seja a morada, a
protecção, a plataforma e o projecto, e seja possível
tornar-se verdadeiramente « uma só carne »
(Gn 2, 24). Sucede, em alguns casais, ocultar ao
próprio cônjuge muitas coisas, que entretanto se
dizem aos pais, chegando ao ponto de se importar
mais com as opiniões destes do que com os
sentimentos e as opiniões do cônjuge. Não é fácil
manter esta situação por muito tempo, e só provisoriamente
poderia ter lugar, isto é, enquanto
se criam as condições para crescer na confiança
e no diálogo. O matrimónio desafia a encontrar
uma nova maneira de ser filho.
Os idosos
191. «Não me rejeites no tempo da velhice;
não me abandones, quando já não tiver forças»
(Sl 71/70, 9). É o brado do idoso, que teme o
esquecimento e o desprezo. Assim como Deus
nos convida a ser seus instrumentos para escutar
a súplica dos pobres, assim também espera que
ouçamos o brado dos idosos.211 Isto interpela as
famílias e as comunidades, porque « a Igreja não
pode nem quer conformar-se com uma mentalidade
de impaciência, e muito menos de indiferença
e desprezo, em relação à velhice. Devemos
despertar o sentido colectivo de gratidão, apreço,
hospitalidade, que faça o idoso sentir-se parte
211 Cf. Relatio Finalis 2015, 17-18.
150
viva da sua comunidade. Os idosos são homens
e mulheres, pais e mães que, antes de nós, percorreram
o nosso próprio caminho, estiveram na
nossa mesma casa, combateram a nossa mesma
batalha diária por uma vida digna ».212 Por isso,
« como gostaria duma Igreja que desafia a cultura
do descarte com a alegria transbordante dum
novo abraço entre jovens e idosos!»213
192. São João Paulo II convidou-nos a prestar
atenção ao lugar do idoso na família, porque há
culturas que, « especialmente depois dum desenvolvimento
industrial e urbanístico desordenado,
forçaram, e continuam a forçar, os idosos a situa-
ções inaceitáveis de marginalização».214 Os idosos
ajudam a perceber « a continuidade das gera-
ções», com «o carisma de lançar uma ponte »215
entre elas. Muitas vezes são os avós que asseguram
a transmissão dos grandes valores aos seus
netos, e «muitas pessoas podem constatar que
devem a sua iniciação na vida cristã precisamente
aos avós».216 As suas palavras, as suas carícias ou
a simples presença ajudam as crianças a reconhe-
212 Francisco, Catequese (4 de Março de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 05/III/2015), 16. 213 Idem, Catequese (11 de Março de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 12/III/2015), 16.
214 Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de
1981), 27: AAS 74 (1982), 113. 215 Idem, Discurso aos participantes no «Fórum Internacional
sobre o Envelhecimento Activo» (5 de Setembro de 1980), 5: Insegnamenti
3/2 (1980), 539; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa
de 21/IX/1980), 14. 216 Relatio Finalis 2015, 18.
151
cer que a história não começa com elas, que são
herdeiras dum longo caminho e que é necessário
respeitar o fundamento que as precede. Quem
quebra os laços com a história terá dificuldade
em tecer relações estáveis e reconhecer que não é
o dono da realidade. Com efeito, « a atenção aos
idosos distingue uma civilização. Numa civiliza-
ção, presta-se atenção ao idoso? Há lugar para o
idoso? Esta civilização irá em frente, se souber
respeitar a sabedoria dos idosos».217
193. A falta de memória histórica é um defeito
grave da nossa sociedade. É a mentalidade imatura
do «já está ultrapassado». Conhecer e ser capaz
de tomar posição perante os acontecimentos
passados é a única possibilidade de construir um
futuro que tenha sentido. Não se pode educar
sem memória: «Recordai os dias passados» (Heb
10, 32). As histórias dos idosos fazem muito bem
às crianças e aos jovens, porque os ligam à histó-
ria vivida tanto pela família como pela vizinhança
e o país. Uma família que não respeita nem cuida
dos seus avós, que são a sua memória viva, é uma
família desintegrada; mas uma família que recorda
é uma família com futuro. Por isso, «numa
civilização em que não há espaço para os idosos
ou onde eles são descartados porque criam problemas,
tal sociedade traz em si o vírus da mor-
217 Francisco, Catequese (4 de Março de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 05/III/2015), 16.
152
te »,218 porque «se separa das próprias raízes».219
O fenómeno contemporâneo de sentir-se órfão,
em termos de descontinuidade, desenraizamento
e perda das certezas que dão forma à vida, desafia-nos
a fazer das nossas famílias um lugar onde
as crianças possam lançar raízes no terreno duma
história colectiva.
Ser irmão
194. A relação entre os irmãos aprofunda-se
com o passar do tempo, e «o laço de fraternidade
que se forma na família entre os filhos, quando
se verifica num clima de educação para a abertura
aos outros, é uma grande escola de liberdade
e de paz. Em família, entre irmãos, aprendemos
a convivência humana (…). Talvez nem sempre
estejamos conscientes disto, mas é precisamente
a família que introduz a fraternidade no mundo.
A partir desta primeira experiência de fraternidade,
alimentada pelos afectos e pela educação
familiar, o estilo da fraternidade irradia-se como
uma promessa sobre a sociedade inteira ».220
195. Crescer entre irmãos proporciona a bela
experiência de cuidar uns dos outros, de ajudar e
ser ajudado. Por isso, « a fraternidade na família
218 Ibidem. 219 Idem, Discurso no Encontro com os Idosos (28 de Setembro
de 2014): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
02/X/2014), 8. 220 Idem, Catequese (18 de Fevereiro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 19/II/2015), 20.
153
resplandece de modo especial quando vemos a
solicitude, a paciência e o carinho com que é circundado
o irmãozinho ou a irmãzinha mais frá-
gil, doente ou deficiente ».221 Faz falta reconhecer
que «ter um irmão, uma irmã que te ama é uma
experiência forte, inestimável, insubstituível»,222
mas é preciso ensinar, com paciência, os filhos
a tratar-se como irmãos. Esta aprendizagem,
por vezes fadigosa, é uma verdadeira escola de
sociabilidade. Nalguns países, existe uma forte
tendência para ter apenas um filho, pelo que a
experiência de ser irmão começa a ser rara. Nos
casos em que não se pôde ter mais de um filho, é
preciso encontrar formas de a criança não crescer
sozinha ou isolada.
Um coração grande
196. Com efeito, além do círculo pequeno formado
pelos cônjuges e seus filhos, temos a família
alargada, que não pode ser ignorada. Com
efeito, «o amor entre o homem e a mulher no
matrimónio e, de forma derivada e ampla, o amor
entre os membros da mesma família – entre pais
e filhos, entre irmãos e irmãs, entre parentes e
familiares – é animado e impelido por um dinamismo
interior e incessante, que leva a família a
uma comunhão sempre mais profunda e intensa,
fundamento e alma da comunidade conjugal
221 Ibidem. 222 Ibidem.
154
e familiar».223 Aí se integram também os amigos
e as famílias amigas, e mesmo as comunidades
de famílias que se apoiam mutuamente nas suas
dificuldades, no seu compromisso social e na fé.
197. Esta família alargada deveria acolher,
com tanto amor, as mães solteiras, as crianças
sem pais, as mulheres abandonadas que devem
continuar a educação dos seus filhos, as pessoas
deficientes que requerem muito carinho e proximidade,
os jovens que lutam contra uma dependência,
as pessoas solteiras, separadas ou viúvas
que sofrem a solidão, os idosos e os doentes que
não recebem o apoio dos seus filhos, até incluir
no seio dela «mesmo os mais desastrados nos
comportamentos da sua vida ».224 E pode também
ajudar a compensar as fragilidades dos pais,
ou a descobrir e denunciar a tempo possíveis situações
de violência ou mesmo de abuso sofridas
pelas crianças, dando-lhes um amor sadio e um
sustentáculo familiar, quando os seus pais não o
podem assegurar.
198. Por fim, não se pode esquecer que, nesta
família alargada, estão também o sogro, a sogra
e todos os parentes do cônjuge. Uma delicadeza
própria do amor é evitar vê-los como concorrentes,
como pessoas perigosas, como invasores.
223 João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro
de 1981), 18: AAS 74 (1982), 101. 224 Francisco, Catequese (7 de Outubro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 08/X/2015), 24.
155
A união conjugal exige que se respeite as suas
tradições e costumes, se procure compreender a
sua linguagem, evitar maledicências, cuidar deles
e integrá-los dalguma forma no próprio coração,
embora se deva preservar a legítima autonomia e
a intimidade do casal. Estas atitudes são também
uma excelente maneira de exprimir a generosidade
da dedicação amorosa ao próprio cônjuge.
157
CAPÍTULO VI
ALGUMAS PERSPECTIVAS PASTORAIS
199. Os debates do caminho sinodal puseram
a descoberto a necessidade de desenvolver novos
caminhos pastorais, que procurarei agora
resumir em geral. As diferentes comunidades é
que deverão elaborar propostas mais práticas e
eficazes, que tenham em conta tanto a doutrina
da Igreja como as necessidades e desafios locais.
Sem pretender apresentar aqui uma pastoral da
família, limitar-me-ei a coligir alguns dos principais
desafios pastorais.
Anunciar hoje o Evangelho da família
200. Os Padres sinodais insistiram no facto de
que as famílias cristãs são, pela graça do sacramento
nupcial, os sujeitos principais da pastoral
familiar, sobretudo oferecendo «o testemunho
jubiloso dos cônjuges e das famílias, igrejas domésticas».225
Para isso – sublinharam – é preciso
fazer-lhes « experimentar que o Evangelho da
família é alegria que “enche o coração e a vida
inteira”, porque, em Cristo, somos “libertados do
pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento”
(Evangelii gaudium, 1). À luz da parábo-
225 Relatio Synodi 2014, 30.
158
la do semeador (cf. Mt 13, 3-9), a nossa tarefa
consiste em cooperar na sementeira: o resto é
obra de Deus. E não se deve esquecer também
que a Igreja, que prega sobre a família, é sinal
de contradição»,226 mas os esposos agradecem
que os pastores lhes ofereçam motivações para
uma aposta corajosa num amor forte, sólido, duradouro,
capaz de enfrentar todos os imprevistos
que lhes surjam. É com humilde compreensão
que a Igreja quer chegar às famílias, com o desejo
de « acompanhar todas e cada uma delas a fim de
que descubram a saída melhor para superar as
dificuldades que encontram no seu caminho».227
Não basta inserir uma genérica preocupação pela
família nos grandes projectos pastorais; para que
as famílias possam ser sujeitos cada vez mais activos
da pastoral familiar, requer-se « um esforço
evangelizador e catequético dirigido à família »,228
que a encaminhe nesta direcção.
201. «Por isso exige-se a toda a Igreja uma conversão
missionária: é preciso não se contentar
com um anúncio puramente teórico e desligado
dos problemas reais das pessoas».229 A pastoral
familiar «deve fazer experimentar que o Evangelho
da família é resposta às expectativas mais
profundas da pessoa humana: a sua dignidade e
plena realização na reciprocidade, na comunhão
226 Ibid., 31. 227 Relatio Finalis 2015, 56. 228 Ibid., 89. 229 Relatio Synodi 2014, 32.
159
e na fecundidade. Não se trata apenas de apresentar
uma normativa, mas de propor valores, correspondendo
à necessidade deles que se constata
hoje, mesmo nos países mais secularizados».230
De igual modo «sublinhou-se a necessidade
duma evangelização que denuncie, com desassombro,
os condicionalismos culturais, sociais,
políticos e económicos, bem como o espaço excessivo
dado à lógica do mercado, que impedem
uma vida familiar autêntica, gerando discrimina-
ção, pobreza, exclusão e violência. Para isso, temos
de entrar em diálogo e cooperação com as
estruturas sociais, bem como encorajar e apoiar
os leigos que se comprometem, como cristãos,
no âmbito cultural e sociopolítico».231
202. «A principal contribuição para a pastoral
familiar é oferecida pela paróquia, que é uma família
de famílias, onde se harmonizam os contributos
das pequenas comunidades, movimentos e
associações eclesiais».232 A par duma pastoral especificamente
voltada para as famílias, há necessidade
duma «formação mais adequada dos presbí-
teros, diáconos, religiosos e religiosas, catequistas
e restantes agentes pastorais».233 Nas respostas às
consultações promovidas em todo o mundo, ressaltou-se
que os ministros ordenados carecem,
habitualmente, de formação adequada para tratar
230 Ibid., 33. 231 Ibid., 38. 232 Relatio Finalis 2015, 77. 233 Ibid., 61.
160
dos complexos problemas atuais das famílias;
para isso, pode ser útil também a experiência da
longa tradição oriental dos sacerdotes casados.
203. Os seminaristas deveriam ter acesso a
uma formação interdisciplinar mais ampla sobre
namoro e matrimónio, não se limitando à doutrina.
Além disso, a formação nem sempre lhes
permite desenvolver o seu mundo psicoafectivo.
Alguns carregam, na sua vida, a experiência da
sua própria família ferida, com a ausência de pais
e instabilidade emocional. É preciso garantir um
amadurecimento, durante a formação, para que
os futuros ministros possuam o equilíbrio psíquico
que a sua missão lhes exige. Os laços familiares
são fundamentais para fortificar a auto-estima
sadia dos seminaristas. Por isso, é importante
que as famílias acompanhem todo o processo do
Seminário e do sacerdócio, pois ajudam a revigorá-lo
de forma realista. Neste sentido, é salutar
a combinação de tempos de vida no Seminário
com outros de vida em paróquias, que permitam
tomar maior contacto com a realidade concreta
das famílias. De facto, ao longo da sua vida
pastoral, o sacerdote encontra-se sobretudo com
famílias. «A presença dos leigos e das famílias,
particularmente a presença feminina, na forma-
ção sacerdotal, favorece o apreço pela variedade
e complementaridade das diferentes vocações na
Igreja ».234
234 Ibidem.
161
204. As respostas às consultações exprimem,
com insistência, também a necessidade de formar
agentes leigos de pastoral familiar, com a ajuda
de psicopedagogos, médicos de família, médicos
de comunidade, assistentes sociais, advogados
de menores e família, predispondo-os para receber
as contribuições da psicologia, sociologia,
sexologia e até aconselhamento. Os profissionais,
particularmente aqueles que têm experiência de
acompanhamento, ajudam a encarnar as propostas
pastorais nas situações reais e nas preocupações
concretas das famílias. «Os itinerários e
cursos de formação destinados especificamente
aos agentes pastorais poderão torná-los idóneos
a inserir o próprio caminho de preparação para
o matrimónio na dinâmica mais ampla da vida
eclesial».235 Uma boa preparação pastoral é importante,
«sobretudo tendo em vista as particulares
situações de emergência decorrentes dos
casos de violência doméstica e abuso sexual».236
Tudo isto em nada diminui, antes integra, o valor
fundamental da direcção espiritual, dos recursos
espirituais inestimáveis da Igreja e da Reconcilia-
ção sacramental.
Guiar os noivos no caminho de preparação
para o matrimónio
205. Os Padres sinodais afirmaram, de várias
maneiras, que é preciso ajudar os jovens a des-
235 Ibidem. 236 Ibidem.
162
cobrir o valor e a riqueza do matrimónio.237 Devem
poder captar o fascínio duma união plena
que eleva e aperfeiçoa a dimensão social da vida,
confere à sexualidade o seu sentido maior, ao
mesmo tempo que promove o bem dos filhos e
lhes proporciona o melhor contexto para o seu
amadurecimento e educação.
206. «A complexa realidade social e os desafios,
que a família é chamada a enfrentar actualmente,
exigem um empenhamento maior
de toda a comunidade cristã na preparação dos
noivos para o matrimónio. É necessário lembrar
a importância das virtudes. Dentre elas, resulta
ser condição preciosa para o crescimento genuí-
no do amor interpessoal a castidade. A respeito
desta necessidade, os Padres sinodais foram concordes
em sublinhar a exigência dum maior envolvimento
de toda a comunidade, privilegiando
o testemunho das próprias famílias, e a exigência
ainda duma radicação da preparação para o matrimónio
no caminho da iniciação cristã, sublinhando
o nexo do matrimónio com o baptismo
e os outros sacramentos. Da mesma forma, evidenciou-se
a necessidade de programas especí-
ficos de preparação próxima para o matrimónio
que sejam verdadeira experiência de participação
na vida eclesial e aprofundem os vários aspectos
da vida familiar».238
237 Cf. Relatio Synodi 2014, 26. 238 Ibid., 39.
163
207. Convido as comunidades cristãs a reconhecerem
que é um bem para elas mesmas acompanhar
o caminho de amor dos noivos. Como
justamente disseram os bispos da Itália, aqueles
que se casam são, para as comunidades cristãs,
« um recurso precioso, porque, esforçando-se
sinceramente por crescer no amor e no dom recí-
proco, podem contribuir para renovar o próprio
tecido de todo o corpo eclesial: a forma particular
de amizade que vivem pode tornar-se contagiosa,
fazendo crescer na amizade e na fraternidade
a comunidade cristã de que fazem parte ».239 Há
várias maneiras legítimas de organizar a prepara-
ção próxima para o matrimónio e cada Igreja local
discernirá a que for melhor, procurando uma
formação adequada que, ao mesmo tempo, não
afaste os jovens do sacramento. Não se trata de
lhes ministrar o Catecismo inteiro nem de os saturar
com demasiados temas, sendo válido também
aqui que «não é o muito saber que enche e
satisfaz a alma, mas o sentir e saborear interiormente
as coisas».240 Interessa mais a qualidade
do que a quantidade, devendo-se dar prioridade
– juntamente com um renovado anúncio do querigma
– àqueles conteúdos que, comunicados de
forma atraente e cordial, os ajudem a comprometer-se
num percurso da vida toda « com ânimo
239 Conferência Episcopal Italiana. Comissão episcopal
para a família e a vida, Orientamenti pastorali sulla preparazione al
matrimonio e alla famiglia (22 de Outubro de 2012), 1. 240 Inácio de Loyola, Exercícios espirituais, anotação 2.
164
grande e liberalidade ».241 Trata-se duma espécie
de «iniciação» ao sacramento do matrimónio,
que lhes forneça os elementos necessários para
poderem recebê-lo com as melhores disposições
e iniciar com uma certa solidez a vida familiar.
208. Além disso, convém encontrar os modos
– através das famílias missionárias, das próprias
famílias dos noivos e de vários recursos pastorais
– para oferecer uma preparação remota que faça
amadurecer o amor deles com um acompanhamento
rico de proximidade e testemunho. Habitualmente,
são muito úteis os grupos de noivos
e a oferta de palestras opcionais sobre uma
variedade de temas que realmente interessam
aos jovens. Entretanto são indispensáveis alguns
momentos personalizados, dado que o objectivo
principal é ajudar cada um a aprender a amar esta
pessoa concreta com quem pretende partilhar a
vida inteira. Aprender a amar alguém não é algo
que se improvisa, nem pode ser o objectivo dum
breve curso antes da celebração do matrimónio.
Na realidade, cada pessoa prepara-se para o matrimónio,
desde o seu nascimento. Tudo o que a
família lhe deu, deveria permitir-lhe aprender da
própria história e torná-la capaz dum compromisso
pleno e definitivo. Provavelmente os que
chegam melhor preparados ao casamento são
aqueles que aprenderam dos seus próprios pais
o que é um matrimónio cristão, onde se escolhe-
241 Ibid., anotação 5.
165
ram um ao outro sem condições e continuam a
renovar esta decisão. Neste sentido todas as actividades
pastorais, que tendem a ajudar os cônjuges
a crescer no amor e a viver o Evangelho na
família, são uma ajuda inestimável a fim de que
os seus filhos se preparem para a sua futura vida
matrimonial. Também não devemos esquecer os
valiosos recursos da pastoral popular. Só para dar
um exemplo simples, lembro o Dia de São Valentim,
que, em alguns países, é melhor aproveitado
pelos comerciantes do que pela criatividade dos
pastores.
209. A preparação dos que já formalizaram o
noivado, quando a comunidade paroquial consegue
acompanhá-los com bom período de antecipação,
deve dar-lhes também a possibilidade
de individuar incompatibilidades e riscos. Assim
é possível chegarem a dar-se conta de que não
é razoável apostar naquela relação, para não se
expor a um previsível fracasso que terá consequências
muito dolorosas. O problema é que o
deslumbramento inicial leva a procurar esconder
ou relativizar muitas coisas, evitam-se as divergências,
limitando-se assim a adiar as dificuldades
para depois. Os noivos deveriam ser incentivados
e ajudados a poderem expressar o que cada um
espera dum eventual matrimónio, a sua maneira
de entender o que é o amor e o compromisso,
aquilo que se deseja do outro, o tipo de vida
em comum que se quer projectar. Estes diálogos
podem ajudar a ver que, na realidade, os pontos
166
de contacto são escassos e que a mera atracção
mútua não será suficiente para sustentar a união.
Não há nada de mais volúvel, precário e imprevisível
que o desejo, e nunca se deve encorajar uma
decisão de contrair matrimónio se não se aprofundaram
outras motivações que confiram a este
pacto reais possibilidades de estabilidade.
210. No caso de se reconhecer com clareza os
pontos fracos do outro, é preciso que exista uma
efectiva confiança na possibilidade de ajudá-lo a
desenvolver o melhor da sua personalidade para
contrabalançar o peso das suas fragilidades, com
um decidido interesse em promovê-lo como ser
humano. Isto implica aceitar com vontade firme
a possibilidade de enfrentar algumas renúncias,
momentos difíceis e situações de conflito, e a
sólida decisão de preparar-se para isso. Deve ser
possível detectar os sinais de perigo que poderá
apresentar a relação, para se encontrar, antes do
matrimónio, os meios que permitam enfrentá-los
com bom êxito. Infelizmente, muitos chegam às
núpcias sem se conhecer. Limitaram-se a divertir-se
juntos, a fazer experiências juntos, mas não
enfrentaram o desafio de se manifestar a si mesmos
e apreender quem é realmente o outro.
211. Tanto a preparação próxima como o
acompanhamento mais prolongado devem procurar
que os noivos não considerem o matrimó-
nio como o fim do caminho, mas o assumam
como uma vocação que os lança para diante, com
a decisão firme e realista de atravessarem juntos
167
todas as provações e momentos difíceis. Tanto
a pastoral pré-matrimonial como a matrimonial
devem ser, antes de mais nada, uma pastoral do
vínculo, na qual se ofereçam elementos que ajudem
quer a amadurecer o amor quer a superar
os momentos duros. Estas contribuições não
são apenas convicções doutrinais, nem se podem
reduzir aos preciosos recursos espirituais que a
Igreja sempre oferece, mas devem ser também
percursos práticos, conselhos bem encarnados,
estratégias tomadas da experiência, orientações
psicológicas. Tudo isto cria uma pedagogia do
amor, que não pode ignorar a sensibilidade actual
dos jovens, para conseguir mobilizá-los interiormente.
Ao mesmo tempo, na preparação
dos noivos, deve ser possível indicar-lhes lugares
e pessoas, consultórios ou famílias prontas a ajudar,
aonde poderão dirigir-se em busca de ajuda
se surgirem dificuldades. Mas nunca se deve esquecer
de lhes propor a Reconciliação sacramental,
que permite colocar os pecados e os erros da
vida passada e da própria relação sob o influxo
do perdão misericordioso de Deus e da sua força
sanadora.
A preparação da celebração
212. A preparação próxima do matrimónio
tende a concentrar-se nos convites, na roupa,
na festa com os seus inumeráveis detalhes que
consomem tanto os recursos económicos como
as energias e a alegria. Os noivos chegam desfalecidos
e exaustos ao casamento, em vez de de-
168
dicarem o melhor das suas forças a preparar-se
como casal para o grande passo que, juntos, vão
dar. Esta mesma mentalidade subjaz também à
decisão dalgumas uniões de facto que nunca mais
chegam ao matrimónio, porque pensam nas elevadas
despesas da festa, em vez de darem prioridade
ao amor mútuo e à sua formalização diante
dos outros. Queridos noivos, tende a coragem de
ser diferentes, não vos deixeis devorar pela sociedade
do consumo e da aparência. O que importa
é o amor que vos une, fortalecido e santificado
pela graça. Vós sois capazes de optar por uma
festa austera e simples, para colocar o amor acima
de tudo. Os agentes pastorais e toda a comunidade
podem ajudar para que esta prioridade se
torne a norma e não a excepção.
213. Na preparação mais imediata, é importante
esclarecer os noivos para viverem com grande
profundidade a celebração litúrgica, ajudando-os
a compreender e viver o significado de cada gesto.
Lembremo-nos de que um compromisso tão
grande como este expresso no consentimento
matrimonial e a união dos corpos que consuma
o matrimónio, quando se trata de dois baptizados,
só podem ser interpretados como sinais do
amor do Filho de Deus feito carne e unido com
a sua Igreja em aliança de amor. Nos baptizados,
as palavras e os gestos transformam-se numa
linguagem que manifesta a fé. O corpo, com os
significados que Deus lhe quis infundir ao criá-lo,
«transforma-se na linguagem dos ministros do
169
sacramento, conscientes de que, no pacto conjugal,
se manifesta e realiza o mistério».242
214. Às vezes, os noivos não percebem o peso
teológico e espiritual do consentimento, que ilumina
o significado de todos os gestos sucessivos.
É necessário salientar que aquelas palavras não
podem ser reduzidas ao presente; implicam uma
totalidade que inclui o futuro: « até que a morte
vos separe ». O sentido do consentimento mostra
que «liberdade e fidelidade não se opõem uma à
outra, aliás apoiam-se reciprocamente quer nas
relações interpessoais quer nas sociais. De facto,
pensemos nos danos que produzem, na civiliza-
ção da comunicação global, o aumento de promessas
não mantidas (...). A honra à palavra dada,
a fidelidade à promessa não se podem comprar
nem vender. Não podem ser impostas com a for-
ça, nem guardadas sem sacrifício».243
215. Os bispos do Quénia fizeram notar que
«os futuros esposos, muito concentrados com
o dia da boda, esquecem-se de que estão a preparar-se
para um compromisso que dura a vida
inteira ».244 Temos de ajudá-los a darem-se conta
de que o sacramento não é apenas um momento
242 João Paulo II, Catequese (27 de Junho de 1984), 4: Insegnamenti
7/1 (1984), 1941; L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 01/VII/1984), 12. 243 Francisco, Catequese (21 de Outubro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 22/X/2015), 16. 244 Conferência Episcopal do Quénia, Mensagem de Quaresma
(18 de Fevereiro de 2015).
170
que depois passa a fazer parte do passado e das
recordações, mas exerce a sua influência sobre
toda a vida matrimonial, de maneira permanente.245
O significado procriador da sexualidade, a
linguagem do corpo e os gestos de amor vividos
na história dum casal de esposos transformam-se
numa « continuidade ininterrupta da linguagem
litúrgica » e « a vida conjugal torna-se de algum
modo liturgia ».246
216. Também se pode meditar com as leituras
bíblicas e enriquecer a compreensão do significado
das alianças que trocam entre si, ou doutros
sinais que fazem parte do rito. Mas não seria bom
chegarem ao matrimónio sem ter rezado juntos,
um pelo outro, pedindo ajuda a Deus para serem
fiéis e generosos, perguntando juntos a Deus que
espera deles, e inclusive consagrando o seu amor
diante duma imagem de Maria. Quem os acompanha
na preparação do matrimónio deveria
orientá-los para que saibam viver estes momentos
de oração, que lhes podem fazer muito bem.
«A liturgia nupcial é um evento único, que se vive
no contexto familiar e social duma festa. Jesus
começou os seus milagres no banquete das bodas
de Caná: o vinho bom do milagre do Senhor,
que alegra o nascimento duma nova família, é o
245 Cf. Pio XI, Carta enc. Casti connubii (31 de Dezembro
de 1930): AAS 22 (1930), 583. 246 João Paulo II, Catequese (4 de Julho de 1984), 3.6: Insegnamenti
7/2 (1984), 9.10; L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 08/VII/1984), 12.
171
vinho novo da Aliança de Cristo com os homens
e mulheres de cada tempo. (...) Frequentemente,
o celebrante tem a oportunidade de se dirigir a
uma assembleia formada por pessoas que participam
pouco na vida eclesial ou pertencem a outra
confissão cristã ou comunidade religiosa. Trata-
-se, pois, duma preciosa ocasião para anunciar o
Evangelho de Cristo».247
Acompanhamento nos primeiros anos
da vida matrimonial
217. Temos de reconhecer como um grande
valor que se compreenda que o matrimónio é
uma questão de amor: só se podem casar aqueles
que se escolhem livremente e se amam. Apesar
disso, se o amor se reduzir a mera atracção
ou a uma vaga afectividade, isto faz com que os
cônjuges sofram duma extraordinária fragilidade
quando a afectividade entra em crise ou a atrac-
ção física diminui. Uma vez que estas confusões
são frequentes, torna-se indispensável o acompanhamento
dos esposos nos primeiros anos de
vida matrimonial, para enriquecer e aprofundar
a decisão consciente e livre de se pertencerem
e amarem até ao fim. Muitas vezes o tempo de
noivado não é suficiente, a decisão de casar-se
apressa-se por várias razões e, como se não bastasse,
atrasou a maturação dos jovens. Assim os
recém-casados têm de completar aquele percurso
que deveria ter sido feito durante o noivado.
247 Relatio Finalis 2015, 59.
172
218. Por outro lado, quero insistir que um desafio
da pastoral familiar é ajudar a descobrir que
o matrimónio não se pode entender como algo
acabado. A união é real, é irrevogável e foi confirmada
e consagrada pelo sacramento do matrimónio;
mas, ao unir-se, os esposos tornam-se
protagonistas, senhores da sua própria história e
criadores dum projecto que deve ser levado para
a frente conjuntamente. O olhar volta-se para o
futuro, que é preciso construir dia-a-dia com a
graça de Deus e, por isso mesmo, não se pretende
do cônjuge que seja perfeito. É preciso pôr
de lado as ilusões e aceitá-lo como é: inacabado,
chamado a crescer, em caminho. Quando o
olhar sobre o cônjuge é constantemente crítico,
isto indica que o matrimónio não foi assumido
também como um projecto a construir juntos,
com paciência, compreensão, tolerância e generosidade.
Isto faz com que o amor seja substituído
pouco a pouco por um olhar inquisidor e
implacável, pelo controle dos méritos e direitos
de cada um, pelas reclamações, a competição e
a autodefesa. Deste modo tornam-se incapazes
de se apoiarem um ao outro para o amadurecimento
de ambos e para o crescimento da união.
Aos novos cônjuges, é necessário apresentar isto
com clareza realista desde o início, de modo que
tomem consciência de que estão apenas a come-
çar. O «sim» que deram um ao outro é o início
dum itinerário, cujo objectivo se propõe superar
as circunstâncias que surgirem e os obstáculos
que se interpuserem. A bênção recebida é uma
173
graça e um impulso para este caminho sempre
aberto. Habitualmente ajuda sentar-se a dialogar
para elaborar o seu projecto concreto com os
seus objectivos, meios, detalhes.
219. Lembro-me dum refrão que dizia que a
água estagnada corrompe-se, estraga-se. O mesmo
acontece com a vida do amor nos primeiros
anos do matrimónio quando fica estagnada,
cessa de mover-se, perde aquela inquietude sadia
que a faz avançar. A dança conduzida com aquele
amor jovem, a dança com aqueles olhos iluminados
pela esperança, não deve parar. No noivado e
nos primeiros anos de matrimónio, é a esperança
que tem em si a força do fermento, que faz olhar
para além das contradições, conflitos, contingências,
que sempre faz ver mais além; é ela que põe
em movimento a ânsia de se manter num caminho
de crescimento. A mesma esperança convida-nos
a viver em cheio o presente, colocando o
coração na vida familiar, porque a melhor forma
de preparar e consolidar o futuro é viver bem o
presente.
220. O caminho implica passar por diferentes
etapas, que convidam a doar-se com generosidade:
do impacto inicial caracterizado por uma
atracção decididamente sensível, passa-se à necessidade
do outro sentido como parte da vida
própria. Daqui passa-se ao gosto da pertença
mútua, seguido pela compreensão da vida inteira
como um projecto de ambos, pela capacidade de
colocar a felicidade do outro acima das neces-
174
sidades próprias, e pela alegria de ver o próprio
matrimónio como um bem para a sociedade.
O amadurecimento do amor implica também
aprender a «negociar». Não se trata duma atitude
interesseira nem dum jogo de tipo comercial,
mas, em última análise, dum exercício do amor
recíproco, já que esta negociação é um entrelaçado
de recíprocas ofertas e renúncias para o bem
da família. Em cada nova etapa da vida matrimonial,
é preciso sentar-se e negociar novamente os
acordos, de modo que não haja vencedores nem
vencidos, mas ganhem ambos. No lar, as decisões
não se tomam unilateralmente, e ambos compartilham
a responsabilidade pela família; mas cada
lar é único e cada síntese conjugal é diferente.
221. Uma das causas que leva a rupturas matrimoniais
é ter expectativas demasiado altas sobre
a vida conjugal. Quando se descobre a realidade
mais limitada e problemática do que se sonhara,
a solução não é pensar imediata e irresponsavelmente
na separação, mas assumir o matrimónio
como um caminho de amadurecimento, onde
cada um dos cônjuges é um instrumento de Deus
para fazer crescer o outro. É possível a mudança,
o crescimento, o desenvolvimento das potencialidades
boas que cada um traz dentro de si. Cada
matrimónio é uma «história de salvação», o que
supõe partir duma fragilidade que, graças ao dom
de Deus e a uma resposta criativa e generosa,
pouco a pouco vai dando lugar a uma realidade
cada vez mais sólida e preciosa. Talvez a maior
175
missão dum homem e duma mulher no amor
seja esta: a de se tornarem, um ao outro, mais
homem e mais mulher. Fazer crescer é ajudar o
outro a moldar-se na sua própria identidade. Por
isso o amor é artesanal. Quando se lê a passagem
da Bíblia sobre a criação do homem e da mulher,
primeiro vê-se Deus que plasma o homem (cf.
Gn 2, 7), depois dá-Se conta de que falta alguma
coisa essencial e plasma a mulher, e então vê a
surpresa do homem: «Ah! Agora sim! Esta sim!»
E, em seguida, quase nos parece ouvir aquele estupendo
diálogo no qual o homem e a mulher
fazem a mútua descoberta. Com efeito, mesmo
nos momentos difíceis, o outro volta a surpreender
e abrem-se novas portas para se reencontrar,
como se fosse a primeira vez; e, em cada nova
etapa, tornam a «plasmar-se » um ao outro. O
amor faz com que um espere pelo outro, exercitando
aquela paciência própria de artesão, que
herdou de Deus.
222. O acompanhamento deve encorajar os
esposos a serem generosos na comunicação da
vida. «De acordo com o carácter pessoal e humanamente
completo do amor conjugal, o justo
caminho para o planeamento familiar pressupõe
um diálogo consensual entre os esposos, o respeito
dos tempos e a consideração da dignidade
de ambos os membros do casal. Neste sentido, é
preciso redescobrir a Encíclica Humanae vitae (cf.
nn. 10-14) e a Exortação apostólica Familiaris consortio
(cf. nn. 14; 28-35) para se reavivar a disponi-
176
bilidade a procriar, contrastando uma mentalidade
frequentemente hostil à vida. (...) A opção da
paternidade responsável pressupõe a formação
da consciência que é “o centro mais secreto e o
santuário do homem, no qual se encontra a sós
com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade
do seu ser” (Gaudium et spes, 16). Quanto mais
procurarem os esposos ouvir, na sua consciência,
a Deus e os seus mandamentos (cf. Rm 2, 15)
e se fizerem acompanhar espiritualmente, tanto
mais a sua decisão será intimamente livre de um
arbítrio subjectivo e da acomodação às modas de
comportamento no seu ambiente ».248 Continua a
ser válido o que ficou dito, com clareza, no Concílio
Vaticano II: os cônjuges, «de comum acordo
e com esforço comum, formarão rectamente
a própria consciência, tendo em conta o seu bem
próprio e o dos filhos já nascidos ou que prevêem
virão a nascer, sabendo ver as condições de
tempo e da própria situação e tendo, finalmente,
em consideração o bem da comunidade familiar,
da sociedade temporal e da própria Igreja. São os
próprios esposos que, em última instância, devem
diante de Deus tomar esta decisão».249 Por
outro lado, «deve-se promover o uso dos métodos
baseados nos “ritmos naturais da fecundidade”
(Humanae vitae, 11). Ponha-se em evidência
também que “estes métodos respeitam o corpo
dos esposos, estimulam a ternura entre eles e fa-
248 Ibid., 63. 249 Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo
Gaudium et spes, 50.
177
vorecem a educação duma liberdade autêntica”
(Catecismo da Igreja Católica, 2370), insistindo sempre
que os filhos são um dom maravilhoso de
Deus, uma alegria para os pais e para a Igreja.
Através deles, o Senhor renova o mundo».250
Alguns recursos
223. Os Padres sinodais afirmaram que «os
primeiros anos de matrimónio são um período
vital e delicado, durante o qual os cônjuges crescem
na consciência dos desafios e do significado
do matrimónio. Daí a necessidade dum acompanhamento
pastoral que continue depois da celebração
do sacramento (cf. Familiaris consortio, parte
III). Nesta pastoral, tem grande importância a
presença de casais de esposos com experiência. A
paróquia é considerada como o lugar onde casais
especializados podem colocar à disposição dos
casais mais jovens a sua ajuda, com o eventual
apoio de associações, movimentos eclesiais e novas
comunidades. Deve-se encorajar os esposos
para uma atitude fundamental de acolhimento
do grande dom dos filhos. É preciso sublinhar a
importância da espiritualidade familiar, da oração
e da participação na Eucaristia dominical, e animar
os cônjuges a reunirem-se regularmente para
promoverem o crescimento da vida espiritual e
a solidariedade nas exigências concretas da vida.
Liturgias, práticas devocionais e Eucaristias cele-
250 Relatio Finalis 2015, 63.
178
bradas para as famílias, sobretudo no aniversário
de matrimónio, foram citadas como vitais para
favorecer a evangelização através da família ».251
224. Este caminho é uma questão de tempo. O
amor precisa de tempo disponível e gratuito, colocando
outras coisas em segundo lugar. Faz falta
tempo para dialogar, abraçar-se sem pressa, partilhar
projectos, escutar-se, olhar-se nos olhos,
apreciar-se, fortalecer a relação. Umas vezes, o
problema é o ritmo frenético da sociedade, ou os
horários impostos pelos compromissos laborais.
Outras vezes, o problema é que o tempo transcorrido
em conjunto não tem qualidade; limitam-
-se a partilhar um espaço físico, mas sem prestar
atenção um ao outro. Os agentes pastorais e
os grupos de famílias deveriam ajudar os casais
jovens ou frágeis a aprenderem a encontrar-se
nestes momentos, a parar um diante do outro, e
inclusive a partilhar momentos de silêncio que os
obriguem a sentir a presença do cônjuge.
225. Os esposos que têm uma boa experiência
de «treino» nesta linha, podem oferecer os instrumentos
práticos que lhes foram úteis: a programação
dos momentos para estar juntos sem
nada exigir, os tempos de recreação com os filhos,
as várias maneiras de celebrar coisas importantes,
os espaços de espiritualidade partilhada. Mas podem
também ensinar recursos que ajudam a en-
251 Relatio Synodi 2014, 40.
179
cher de conteúdo e sentido tais momentos, para
se aprender a comunicar melhor. Isto é da má-
xima importância quando se apagou a novidade
do noivado. Com efeito, quando não se sabe que
fazer com o tempo partilhado, um ou outro dos
cônjuges acabará por se refugiar na tecnologia,
inventará outros compromissos, buscará outros
braços, ou escapará duma intimidade incómoda.
226. Aos casais jovens, deve-se animar também
a criar os seus próprios hábitos, que proporcionem
uma salutar sensação de estabilidade
e protecção e que se constroem com uma série
de rituais diários compartilhados. É bom dar-se
sempre um beijo pela manhã, benzer-se todas as
noites, esperar pelo outro e recebê-lo à chegada,
ter alguma saída juntos, compartilhar as tarefas
domésticas. Ao mesmo tempo, porém, é bom
vencer a rotina com a festa, não perder a capacidade
de celebrar em família, alegrar-se e festejar
as experiências belas. Precisam de compartilhar a
surpresa pelos dons de Deus e alimentar, juntos,
o entusiasmo pela vida. Quando se sabe celebrar,
esta capacidade renova a energia do amor, liberta-o
da monotonia e enche de cor e esperança os
hábitos diários.
227. Nós, pastores, devemos animar as famílias
a crescerem na fé. Para isso, é bom incentivar a
confissão frequente, a direcção espiritual, a participação
em retiros. Mas há que convidar também
a criar espaços semanais de oração familiar, porque
« a família que reza unida permanece unida ».
180
Entretanto, quando visitamos os lares, devemos
convidar todos os membros da família para um
momento de oração, a fim de rezar uns pelos
outros e entregar a família nas mãos do Senhor.
Ao mesmo tempo, convém incentivar cada um
dos cônjuges a reservar momentos de oração a
sós diante de Deus, porque cada qual tem as suas
cruzes secretas. Por que não contar a Deus o que
turba o coração ou pedir-Lhe a força para curar
as próprias feridas e pedir as luzes necessárias
para poder cumprir o próprio compromisso? Os
Padres sinodais salientaram também que « a Palavra
de Deus é fonte de vida e espiritualidade para
a família. Toda a pastoral familiar deverá deixar-
-se moldar interiormente e formar os membros
da igreja doméstica, através da leitura orante e
eclesial da Sagrada Escritura. A Palavra de Deus
é não só uma boa nova para a vida privada das
pessoas, mas também um critério de juízo e uma
luz para o discernimento dos vários desafios que
têm de enfrentar os cônjuges e as famílias».252
228. Pode acontecer que um dos cônjuges não
seja baptizado ou não queira viver os compromissos
da fé. Neste caso, o desejo que o outro
tem de viver e crescer como cristão faz com que
a indiferença do cônjuge seja vivida com amargura.
Apesar disso, é possível encontrar alguns
valores comuns que se podem partilhar e cultivar
com entusiasmo. Seja como for, amar o cônjuge
252 Ibid., 34.
181
não crente, fazê-lo feliz, aliviar os seus sofrimentos
e partilhar a vida com ele é um verdadeiro
caminho de santificação. Por outro lado, o amor
é um dom de Deus e, onde se derrama, faz sentir
a sua força transformadora, por vezes de maneira
misteriosa, a ponto que «o marido não crente é
santificado pela mulher, e a mulher não crente é
santificada pelo marido» (1 Cor 7, 14).
229. As paróquias, os movimentos, as escolas e
outras instituições da Igreja podem desenvolver
várias mediações para apoiar e reavivar as famí-
lias. Por exemplo, através de recursos como reuniões
de casais vizinhos ou amigos, breves retiros
para casais, conferências de especialistas sobre
problemáticas muito concretas da vida familiar,
centros de aconselhamento conjugal, agentes
missionários preparados para falar com os casais
acerca das suas dificuldades e aspirações, consultas
sobre diferentes situações familiares (dependências,
infidelidade, violência familiar), espaços
de espiritualidade, escolas de formação para pais
com filhos problemáticos, assembleias familiares.
A secretaria paroquial deveria ter possibilidades
de receber com cordialidade e ocupar-se das urgências
familiares, ou encaminhá-las facilmente
para quem possa dar ajuda. Há também um apoio
pastoral que se verifica nos grupos de casais, sejam
eles de serviço ou de missão, de oração, de
formação ou de mútua ajuda. Estes grupos proporcionam
a ocasião de dar, de viver a abertura
da família aos outros, de partilhar a fé, mas ao
182
mesmo tempo são um meio para fortalecer os
cônjuges e fazê-los crescer.
230. É verdade que muitos casais de esposos
desaparecem da comunidade cristã depois do
matrimónio, mas com frequência desperdiçamos
algumas ocasiões em que eles voltam a estar presentes
e nas quais poderíamos tornar a propor-
-lhes, de forma atraente, o ideal do matrimónio
cristão e aproximá-los a espaços de acompanhamento.
Refiro-me, por exemplo, ao baptismo
dum filho, à Primeira Comunhão, ou quando
participam num funeral ou no casamento dum
parente ou amigo. Quase todos os casais voltam
a aparecer nestas ocasiões, que se poderiam aproveitar
melhor. Outro caminho de abordagem é
a bênção das casas ou a visita duma imagem da
Virgem, que dão oportunidade para desenvolver
um diálogo pastoral sobre a situação da família.
Pode ser útil também confiar a casais mais maduros
a tarefa de acompanhar casais mais recentes
da sua própria vizinhança, a fim de os visitar,
acompanhar nos seus inícios e propor-lhes um
percurso de crescimento. Com o ritmo da vida
actual, a maioria dos casais não estará disposta
a reuniões frequentes, mas não podemos reduzir-nos
a uma pastoral de pequenas elites. Hoje,
a pastoral familiar deve ser fundamentalmente
missionária, em saída, por aproximação, em vez
de se reduzir a ser uma fábrica de cursos a que
poucos assistem.
183
Iluminar crises, angústias e dificuldades
231. Deixo aqui uma palavra àqueles que, no
amor, já envelheceram o vinho novo do noivado.
Quando o vinho envelhece com esta experiência
do caminho, então aparece, floresce em toda a
sua plenitude a fidelidade dos momentos insignificantes
da vida. É a fidelidade da espera e da
paciência. Esta fidelidade, cheia de sacrifícios e
alegrias, de certo modo vai florescendo na idade
em que tudo fica «sazonado» e os olhos brilham
com a contemplação dos filhos de seus filhos.
Foi assim desde o início, mas agora tornou-se
consciente, assente, amadurecido na surpresa
quotidiana da redescoberta dia após dia, ano
após ano. Como ensinava São João da Cruz, «os
velhos amantes são os já treinados e testados».
Eles «já não têm aqueles fervores sensíveis nem
aquelas ebulições e chamas externas de ardor,
mas saboreiam a suavidade do vinho de amor
bem sedimentado na sua substância (...) assente
dentro da alma ».253 Isto supõe que foram capazes
de superar, juntos, as crises e os momentos de
angústia, sem fugir aos desafios nem esconder as
dificuldades.
O desafio das crises
232. A história duma família está marcada por
crises de todo o género, que são parte também da
sua dramática beleza. É preciso ajudar a desco-
253 Cântico espiritual B, XXV, 11.
184
brir que uma crise superada não leva a uma rela-
ção menos intensa, mas a melhorar, sedimentar e
maturar o vinho da união. Não se vive juntos para
ser cada vez menos feliz, mas para aprender a ser
feliz de maneira nova, a partir das possibilidades
que abre uma nova etapa. Cada crise implica uma
aprendizagem, que permite incrementar a intensidade
da vida comum ou, pelo menos, encontrar
um novo sentido para a experiência matrimonial.
É preciso não se resignar de modo algum a uma
curva descendente, a uma inevitável deterioração,
a uma mediocridade que se tem de suportar. Pelo
contrário, quando se assume o matrimónio como
uma tarefa que implica também superar obstáculos,
cada crise é sentida como uma ocasião para
chegar a beber, juntos, o vinho melhor. É bom
acompanhar os cônjuges, para que sejam capazes
de aceitar as crises que lhes sobrevêm, aceitar o
desafio e atribuir-lhes um lugar na vida familiar.
Os casais experientes e formados devem estar
dispostos a acompanhar outros nesta descoberta,
para que as crises não os assustem nem os levem
a tomar decisões precipitadas. Cada crise esconde
uma boa notícia, que é preciso saber escutar,
afinando os ouvidos do coração.
233. Perante o desafio duma crise, a reacção
imediata é resistir, pôr-se à defesa por sentir
que escapa ao próprio controle, por mostrar a
insuficiência da própria maneira de viver, e isto
incomoda. Então usa-se o método de negar os
problemas, escondê-los, relativizar a sua impor-
185
tância, apostar apenas em que o tempo passe.
Mas isto adia a solução e leva a gastar muitas
energias num ocultamento inútil que complicará
ainda mais as coisas. Os vínculos vão-se deteriorando
e consolida-se um isolamento que danifica
a intimidade. Numa crise não assumida, o que
mais se prejudica é a comunicação. Assim, pouco
a pouco, aquela que era « a pessoa que amo» passa
a ser « quem me acompanha sempre na vida »,
a seguir apenas «o pai ou a mãe dos meus filhos»,
e por fim um estranho.
234. Para se enfrentar uma crise, é necessário
estar presente. É difícil, porque às vezes as pessoas
isolam-se para não mostrar o que sentem,
trancam-se num silêncio mesquinho e enganador.
Nestes momentos, é necessário criar espa-
ços para comunicar de coração a coração. O problema
é que se torna ainda mais difícil comunicar
num momento de crise, se nunca se aprendeu a
fazê-lo. É uma verdadeira arte que se aprende em
tempos calmos, para se pôr em prática nos tempos
borrascosos. É preciso ajudar a descobrir as
causas mais recônditas nos corações dos esposos
e enfrentá-las como um parto que passará e
deixará um novo tesouro. Mas, nas respostas às
consultações realizadas, assinalava-se que, em situações
difíceis ou críticas, a maioria não recorre
ao acompanhamento pastoral, porque não o sente
compreensivo, próximo, realista, encarnado.
Por isso, procuremos agora debruçar-nos sobre
as crises conjugais com um olhar que não ignore
a sua carga de sofrimento e angústia.
186
235. Há crises comuns que costumam verificar-se
em todos os matrimónios, como a crise
ao início quando é preciso aprender a conciliar
as diferenças e a desligar-se dos pais; ou a crise
da chegada do filho, com os seus novos desafios
emotivos; a crise de educar uma criança, que altera
os hábitos do casal; a crise da adolescência
do filho, que exige muitas energias, desestabiliza
os pais e às vezes contrapõem-nos entre si; a crise
do «ninho vazio», que obriga o casal a fixar
de novo o olhar um no outro; a crise causada
pela velhice dos pais dos cônjuges, que requer
mais presença, solicitude e decisões difíceis. São
situações exigentes, que provocam temores, sentimentos
de culpa, depressões ou cansaços que
podem afectar gravemente a união.
236. A estas crises, vêm juntar-se as crises pessoais
com incidência no casal, relacionadas com
dificuldades económicas, laborais, afectivas, sociais,
espirituais. E acrescentam-se circunstâncias
inesperadas, que podem alterar a vida familiar e
exigir um caminho de perdão e reconciliação. No
próprio momento em que procura dar o passo
do perdão, cada um deve questionar-se, com serena
humildade, se não criou as condições para
expor o outro a cometer certos erros. Algumas
famílias sucumbem, quando os cônjuges se culpam
mutuamente, mas « a experiência mostra
que, com uma ajuda adequada e com a acção de
reconciliação da graça, uma grande percentagem
de crises matrimoniais é superada de forma satis-
187
fatória. Saber perdoar e sentir-se perdoado é uma
experiência fundamental na vida familiar».254 «A
fadigosa arte da reconciliação, que requer o apoio
da graça, precisa da generosa colaboração de parentes
e amigos, e, eventualmente, até duma ajuda
externa e profissional».255
237. Tornou-se frequente que, quando um
cônjuge sente que não recebe o que deseja, ou
não se realiza o que sonhava, isso lhe pareça ser
suficiente para pôr termo ao matrimónio. Mas,
assim, não haverá matrimónio que dure. Às vezes,
para decidir que tudo acabou, basta uma
desilusão, a ausência num momento em que se
precisava do outro, um orgulho ferido ou um temor
indefinido. Há situações próprias da inevitá-
vel fragilidade humana, a que se atribui um peso
emotivo demasiado grande. Por exemplo, a sensação
de não ser completamente correspondido,
os ciúmes, as diferenças que podem surgir entre
os dois, a atracção suscitada por outras pessoas,
os novos interesses que tendem a apoderar-se do
coração, as mudanças físicas do cônjuge e tantas
outras coisas que, mais do que atentados contra o
amor, são oportunidades que convidam a recriá-
-lo uma vez mais.
238. Nestas circunstâncias, alguns têm a maturidade
necessária para voltar a escolher o outro
como companheiro de estrada, para além dos
254 Relatio Synodi 2014, 44. 255 Relatio Finalis 2015, 81
188
limites da relação, e aceitam com realismo que
não se possam satisfazer todos os sonhos acalentados.
Evitam considerar-se os únicos mártires,
apreciam as pequenas ou limitadas possibilidades
que lhes oferece a vida em família e apostam
em fortalecer o vínculo numa construção que
exigirá tempo e esforço. No fundo, reconhecem
que cada crise é como um novo «sim» que torna
possível o amor renascer reforçado, transfigurado,
amadurecido, iluminado. A partir duma crise,
tem-se a coragem de buscar as raízes profundas
do que está a suceder, de voltar a negociar os
acordos fundamentais, de encontrar um novo
equilíbrio e de percorrer juntos uma nova etapa.
Com esta atitude de constante abertura, podem-
-se enfrentar muitas situações difíceis. Em todo
o caso, reconhecendo que a reconciliação é possível,
hoje descobrimos que «se revela particularmente
urgente um ministério dedicado àqueles
cuja relação matrimonial se rompeu ».256
Velhas feridas
239. É compreensível que, nas famílias, haja
muitas dificuldades, quando um dos seus membros
não amadureceu a sua maneira de relacionar-se,
porque não curou feridas dalguma etapa
da sua vida. A própria infância e a própria adolescência
mal vividas são terreno fértil para crises
pessoais que acabam por afectar o matrimónio.
256 Ibid., 78.
189
Se todos fossem pessoas que amadureceram normalmente,
as crises seriam menos frequentes e
menos dolorosas. A verdade, porém, é que às vezes
as pessoas precisam de realizar aos quarenta
anos um amadurecimento atrasado que deveria
ter sido alcançado no fim da adolescência. Às
vezes ama-se com um amor egocêntrico próprio
da criança, fixado numa etapa onde a realidade é
distorcida e se vive o capricho de que tudo deva
girar à volta do próprio eu. É um amor insaciá-
vel, que grita e chora quando não obtém aquilo
que deseja. Outras vezes ama-se com um amor
fixado na fase da adolescência, caracterizado pelo
confronto, a crítica ácida, o hábito de culpar os
outros, a lógica do sentimento e da fantasia, onde
os outros devem preencher os nossos vazios ou
apoiar os nossos caprichos.
240. Muitos terminam a sua infância sem nunca
se terem sentido amados incondicionalmente,
e isto compromete a sua capacidade de confiar
e entregar-se. Uma relação mal vivida com os
seus pais e irmãos, que nunca foi curada, reaparece
e danifica a vida conjugal. Então é preciso
fazer um percurso de libertação, que nunca se
enfrentou. Quando a relação entre os cônjuges
não funciona bem, antes de tomar decisões importantes,
convém assegurar-se de que cada um
tenha feito este caminho de cura da própria história.
Isto exige que se reconheça a necessidade
de ser curado, que se peça com insistência a graça
de perdoar e perdoar-se, que se aceite ajuda, se
190
procurem motivações positivas e se tente sempre
de novo. Cada um deve ser muito sincero consigo
mesmo, para reconhecer que o seu modo de
viver o amor tem estas imaturidades. Por mais
evidente que possa parecer que toda a culpa seja
do outro, nunca é possível superar uma crise esperando
que apenas o outro mude. É preciso
também questionar-se a si mesmo sobre as coisas
que poderia pessoalmente amadurecer ou curar
para favorecer a superação do conflito.
Acompanhar depois das rupturas e dos divórcios
241. Nalguns casos, a consideração da própria
dignidade e do bem dos filhos exige pôr um limite
firme às pretensões excessivas do outro, a
uma grande injustiça, à violência ou a uma falta
de respeito que se tornou crónica. É preciso reconhecer
que «há casos em que a separação é
inevitável. Por vezes, pode tornar-se até moralmente
necessária, quando se trata de defender o
cônjuge mais frágil, ou os filhos pequenos, das
feridas mais graves causadas pela prepotência e
a violência, pela humilhação e a exploração, pela
alienação e a indiferença ».257 Mas «deve ser considerado
um remédio extremo, depois que se tenham
demonstrado vãs todas as tentativas razoá-
veis».258
257 Francisco, Catequese (24 de Junho de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 25/VI/2015), 20. 258 João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro
de 1981), 83: AAS 74 (1982), 184.
191
242. Os Padres disseram que « é indispensável
um discernimento particular para acompanhar
pastoralmente os separados, os divorciados, os
abandonados. Tem-se de acolher e valorizar sobretudo
a angústia daqueles que sofreram injustamente
a separação, o divórcio ou o abandono,
ou então foram obrigados, pelos maus-tratos do
cônjuge, a romper a convivência. Não é fácil o
perdão pela injustiça sofrida, mas constitui um
caminho que a graça torna possível. Daí a necessidade
duma pastoral da reconciliação e da
mediação, inclusive através de centros de escuta
especializados que se devem estabelecer nas dioceses».259
Ao mesmo tempo, « as pessoas divorciadas
que não voltaram a casar (que são muitas
vezes testemunhas da fidelidade matrimonial)
devem ser encorajadas a encontrar na Eucaristia
o alimento que as sustente no seu estado. A comunidade
local e os pastores devem acompanhar
estas pessoas com solicitude, sobretudo quando
há filhos ou é grave a sua situação de pobreza ».260
Um falimento matrimonial torna-se muito mais
traumático e doloroso quando há pobreza, porque
se têm muito menos recursos para reordenar
a existência. Uma pessoa pobre, que perde o
ambiente protector da família, fica duplamente
exposta ao abandono e a todo o tipo de riscos
para a sua integridade.
243. Quanto às pessoas divorciadas que vivem
numa nova união, é importante fazer-lhes sentir
259 Relatio Synodi 2014, 47. 260 Ibid., 50.
192
que fazem parte da Igreja, que «não estão excomungadas»
nem são tratadas como tais, porque
sempre integram a comunhão eclesial.261 Estas situações
« exigem um atento discernimento e um
acompanhamento com grande respeito, evitando
qualquer linguagem e atitude que as faça sentir
discriminadas e promovendo a sua participação
na vida da comunidade. Cuidar delas não é, para
a comunidade cristã, um enfraquecimento da sua
fé e do seu testemunho sobre a indissolubilidade
do matrimónio; antes, ela exprime precisamente
neste cuidado a sua caridade ».262
244. Além disso, um grande número de Padres
«sublinhou a necessidade de tornar mais acessí-
veis, ágeis e possivelmente gratuitos de todo os
procedimentos para o reconhecimento dos casos
de nulidade ».263 A lentidão dos processos irrita
e cansa as pessoas. Os meus dois documentos
recentes sobre tal matéria264 levaram a uma simplificação
dos procedimentos para uma eventual
declaração de nulidade matrimonial. Através deles,
quis também « evidenciar que o próprio bispo
na sua Igreja, da qual está constituído pastor e
261 Cf. Francisco, Catequese (5 de Agosto de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 06-13/VIII/2015),
16. 262 Relatio Synodi 2014, 51; cf. Relatio Finalis 2015, 84. 263 Relatio Synodi 2014, 48. 264 Cf. Motu proprio Mitis Iudex Dominus Iesus (15 de
Agosto de 2015): L’Osservatore Romano (ed. diária italiana de
09/IX/2015), 3-4; Motu proprio Mitis et Misericors Iesus (15 de
Agosto de 2015): L’Osservatore Romano (ed. diária italiana de 09/
IX/2015), 5-6.
193
chefe, é por isso mesmo juiz no meio dos fiéis
a ele confiados».265 Por isso, « a aplicação destes
documentos é uma grande responsabilidade para
os Ordinários diocesanos, chamados eles pró-
prios a julgar algumas causas e a garantir, de todos
os modos possíveis, um acesso mais fácil dos
fiéis à justiça. Isto implica a preparação de pessoal
suficiente, composto por clérigos e leigos,
que se dedique de modo prioritário a este serviço
eclesial. Por conseguinte, será necessário colocar
à disposição das pessoas separadas ou dos casais
em crise um serviço de informação, aconselhamento
e mediação, ligado à pastoral familiar, que
possa também acolher as pessoas tendo em vista
a investigação preliminar do processo matrimonial
(cf. Mitis Iudex, arts. 2-3)».266
245. Os Padres sinodais puseram em evidência
também « as consequências da separação ou
do divórcio sobre os filhos, em todo o caso ví-
timas inocentes da situação».267 Acima de todas
as considerações que se queiram fazer, eles são a
primeira preocupação, que não deve ser ofuscada
por nenhum outro interesse ou objectivo. Peço
aos pais separados: «Nunca, nunca e nunca tomeis
o filho como refém! Separastes-vos devido
a muitas dificuldades e motivos, a vida deu-vos
265 Motu proprio Mitis Iudex Dominus Iesus (15 de Agosto
de 2015), preâmbulo, III: L’Osservatore Romano (ed. diária italiana
de 09/IX/2015), 3. 266 Relatio Finalis 2015, 82. 267 Relatio Synodi 2014, 47.
194
esta provação, mas os filhos não devem carregar
o fardo desta separação; que eles não sejam
usados como reféns contra o outro cônjuge, mas
cresçam ouvindo a mãe falar bem do pai, embora
já não estejam juntos, e o pai falar bem da
mãe ».268 É irresponsável arruinar a imagem do
pai ou da mãe com o objectivo de monopolizar o
afecto do filho, para se vingar ou defender, porque
isso afectará a vida interior daquela criança e
provocará feridas difíceis de curar.
246. A Igreja, embora compreenda as situações
conflituosas que devem atravessar os cônjuges,
não pode cessar de ser a voz dos mais frágeis:
os filhos, que sofrem muitas vezes em silêncio.
Hoje, «não obstante a nossa sensibilidade aparentemente
evoluída e todas as nossas análises
psicológicas refinadas, pergunto-me se não nos
entorpecemos também relativamente às feridas
da alma das crianças. (...) Sentimos nós o peso
da montanha que esmaga a alma duma criança,
nas famílias onde se maltrata e magoa, até quebrar
o vínculo da fidelidade conjugal?»269 Tais
experiências molestas não ajudam estas crianças
a amadurecer para serem capazes de compromissos
definitivos. Por isso, as comunidades cristãs
não devem deixar sozinhos os pais divorciados
que vivem numa nova união. Pelo contrário, de-
268 Francisco, Catequese (20 de Maio de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 21/V/2015), 20. 269 Idem, Catequese (24 de Junho de 2015): L’Osservatore Romano
(ed. semanal portuguesa de 25/VI/2015), 20.
195
vem integrá-los e acompanhá-los na sua função
educativa. Aliás, « como poderíamos recomendar
a estes pais que façam todo o possível por educar
os seus filhos na vida cristã, dando-lhes o exemplo
duma fé convicta e praticada, se os mantivéssemos
à distância da vida da comunidade, como
se estivessem excomungados? Devemos proceder
de modo que não se acrescentem outros
pesos àqueles que os filhos, nestas situações, já
têm que suportar».270 Ajudar a curar as feridas
dos pais e sustentá-los espiritualmente é bom
também para os filhos, que precisam do rosto
familiar da Igreja que os ampare nesta experiência
traumática. O divórcio é um mal, e é muito
preocupante o aumento do número de divórcios.
Por isso, sem dúvida, a nossa tarefa pastoral mais
importante relativamente às famílias é reforçar o
amor e ajudar a curar as feridas, para podermos
impedir o avanço deste drama do nosso tempo.
Algumas situações complexas
247. «As questões relacionadas com os matrimónios
mistos requerem uma atenção específica.
Os matrimónios entre católicos e outros
baptizados “apresentam, na sua fisionomia particular,
numerosos elementos que convém valorizar
e desenvolver quer pelo seu valor intrínseco
quer pela ajuda que podem dar ao movimento
ecuménico”. Com tal finalidade, “procure-se
270 Idem, Catequese (5 de Agosto de 2015): L’Osservatore Romano
(ed. semanal portuguesa de 06-13/VIII/2015), 16.
196
(…) uma colaboração cordial entre o ministro
católico e o não católico, desde o momento da
preparação para o matrimónio e para as núpcias”
(Familiaris consortio, 78). Quanto à participação eucarística,
recorda-se que “a decisão de admitir ou
não a parte não católica do matrimónio à comunhão
eucarística deve ser tomada de acordo com
as normas gerais em vigor na matéria, tanto para
os cristãos orientais como para os outros cristãos,
e tendo em conta esta situação particular,
isto é, que recebem o sacramento do matrimó-
nio cristão dois cristãos baptizados. Embora os
esposos de um matrimónio misto tenham em
comum os sacramentos do baptismo e do matrimónio,
a partilha da Eucaristia pode apenas
ser excepcional e, em todo o caso, devem-se observar
as disposições indicadas” (Pont. Conselho
para a Promoção da Unidade dos Cristãos, Directório
para a Aplicação dos Princípios e das Normas sobre
o Ecumenismo, 25 de Março de 1993, 159-160)».271
248. «Os matrimónios com disparidade de culto
constituem um lugar privilegiado de diálogo
inter-religioso (...). Comportam algumas dificuldades
especiais quer em relação à identidade
cristã da família quer quanto à educação religiosa
dos filhos. (...) O número das famílias compostas
por uniões conjugais com disparidade de culto,
em aumento nos territórios de missão e também
nos países de longa tradição cristã, requer
271 Relatio Finalis 2015, 72.
197
urgentemente uma atenção pastoral diferenciada
segundo os distintos contextos sociais e culturais.
Nalguns países, onde não há liberdade de religião,
o cônjuge cristão é obrigado a mudar de religião
para se poder casar, e não pode celebrar o
matrimónio canónico com disparidade de culto
nem baptizar os filhos. Devemos, pois, reafirmar
a necessidade de que a liberdade religiosa seja
respeitada em favor de todos».272 «É necessário
prestar uma atenção particular às pessoas que se
unem em tais matrimónios, e não só no período
anterior ao casamento. Enfrentam desafios peculiares
os casais e as famílias, nos quais um dos
cônjuges é católico e o outro não-crente. Em tais
casos, é necessário testemunhar a capacidade que
tem o Evangelho de mergulhar nestas situações
para tornar possível a educação dos filhos na fé
cristã ».273
249. «Apresentam dificuldades particulares
as situações que dizem respeito ao acesso ao
baptismo de pessoas que estão numa condição
matrimonial complexa. Trata-se de pessoas que
contraíram uma união matrimonial estável, num
tempo em que pelo menos uma delas ainda não
conhecia a fé cristã. Os bispos são chamados a
exercitar, nestes casos, um discernimento pastoral
cônsono ao bem espiritual delas».274
272 Ibid., 73. 273 Ibid., 74. 274 Ibid., 75.
198
250. A Igreja conforma o seu comportamento
ao do Senhor Jesus que, num amor sem fronteiras,
Se ofereceu por todas as pessoas sem exce-
ção.275 Com os Padres sinodais, examinei a situa-
ção das famílias que vivem a experiência de ter
no seu seio pessoas com tendência homossexual,
experiência não fácil nem para os pais nem para
os filhos. Por isso desejo, antes de mais nada, reafirmar
que cada pessoa, independentemente da
própria orientação sexual, deve ser respeitada na
sua dignidade e acolhida com respeito, procurando
evitar « qualquer sinal de discriminação injusta
»276 e particularmente toda a forma de agressão
e violência. Às famílias, por sua vez, deve-se
assegurar um respeitoso acompanhamento, para
que quantos manifestam a tendência homossexual
possam dispor dos auxílios necessários para
compreender e realizar plenamente a vontade de
Deus na sua vida.277
251. No decurso dos debates sobre a dignidade
e a missão da família, os Padres sinodais anotaram,
quanto aos projetos de equiparação ao matrimónio
das uniões entre pessoas homossexuais,
que não existe fundamento algum para assimilar
ou estabelecer analogias, nem sequer remotas,
entre as uniões homossexuais e o desígnio de
Deus sobre o matrimónio e a família. É «inacei-
275 Cf. Francisco, Bula Misericordiæ Vultus (11 de Abril de
2015), 12: AAS 107 (2015), 407. 276 Catecismo da Igreja Católica, 2358; cf. Relatio Finalis 2015, 76. 277 Cf. Catecismo da Igreja Católica, 2358.
199
tável que as Igrejas locais sofram pressões nesta
matéria e que os organismos internacionais condicionem
a ajuda financeira aos países pobres à
introdução de leis que instituam o “matrimónio”
entre pessoas do mesmo sexo».278
252. As famílias monoparentais têm frequentemente
origem a partir de «mães ou pais biológicos
que nunca quiseram integrar-se na vida
familiar, situações de violência em que um dos
progenitores teve de fugir com seus filhos, morte
de um dos pais, abandono da família por um dos
progenitores e outras situações. Seja qual for a
causa, o progenitor que vive com a criança deve
encontrar apoio e conforto nas outras famílias
que formam a comunidade cristã, bem como nos
organismos pastorais paroquiais. Além disso, estas
famílias são muitas vezes afligidas pela gravidade
dos problemas económicos, pela incerteza
dum trabalho precário, pela dificuldade de manter
os filhos, pela falta duma casa ».279
Quando a morte crava o seu aguilhão
253. Às vezes, a vida familiar vê-se desafiada
pela morte de um ente querido. Não podemos
deixar de oferecer a luz da fé para acompanhar
as famílias que sofrem em tais momentos.280
278 Relatio Finalis 2015, 76; cf. Congr. para a Doutrina
da Fé, Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões
entre pessoas homossexuais (3 de Junho de 2003), 4. 279 Relatio Finalis 2015, 80. 280 Cf. ibid., 20.
200
Abandonar uma família atribulada por uma morte
seria uma falta de misericórdia, seria perder
uma oportunidade pastoral, e tal atitude pode fechar-nos
as portas para qualquer eventual acção
evangelizadora.
254. Compreendo a angústia de quem perdeu
uma pessoa muito amada, um cônjuge com quem
se partilhou tantas coisas. O próprio Jesus Se comoveu
e chorou no velório dum amigo (cf. Jo 11,
33.35). E como não compreender o lamento de
quem perdeu um filho? Com efeito, « é como se
o tempo parasse: abre-se um abismo que engole
o passado e também o futuro. (...) E às vezes chega-se
até a dar a culpa a Deus! Quantas pessoas
– compreendo-as – se chateiam com Deus».281
«A viuvez é uma experiência particularmente difícil
(...). Alguns, quando têm de viver esta experiência,
mostram que sabem fazer convergir as
suas energias para uma dedicação ainda maior
aos filhos e netos, encontrando nesta experiência
de amor uma nova missão educativa. (...) Aqueles
que já não podem contar com a presença de
familiares a quem se dedicar e de quem receber
carinho e proximidade, a comunidade cristã deve
sustentá-los com particular atenção e disponibilidade,
sobretudo se vivem em condições de indigência
».282
281 Francisco, Catequese (17 de Junho de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 18/VI/2015), 16. 282 Relatio Finalis 2015, 19.
201
255. Em geral, o luto pelos falecidos pode durar
bastante tempo e, quando um pastor quer
acompanhar este percurso, deve adaptar-se às
necessidades de cada uma das suas fases. Todo o
percurso é atravessado por interrogativos sobre
as causas da morte, o que poderia ter sido feito,
o que uma pessoa vive nos momentos anteriores
à morte... Com um caminho sincero e paciente
de oração e libertação interior, volta a paz. No
luto, há momentos em que é preciso ajudar a descobrir
que, embora tenhamos perdido um ente
querido, existe ainda uma missão a cumprir e não
nos faz bem querer prolongar a tristeza, como se
isto fosse uma homenagem. A pessoa amada não
precisa da nossa tristeza, nem retém lisonjeiro
que arruinemos a nossa vida. E também não é a
melhor expressão de amor lembrá-la e nomeá-la
a cada momento, porque significa estar preso a
um passado que já não existe, em vez de amar a
pessoa real que agora se encontra no Além. A sua
presença física já não é possível; é verdade que
a morte é algo de poderoso, mas «forte como a
morte é o amor» (Ct 8, 6). O amor possui uma
intuição que lhe permite escutar sem sons e ver
no invisível. Isto não é imaginar o ente querido
como era, mas poder aceitá-lo transformado,
como é agora. Jesus ressuscitado, quando a sua
amiga Maria Madalena quis abraçá-Lo intensamente,
pediu-lhe que não O tocasse (cf. Jo 20,
17) para a levar a um encontro diferente.
256. Consola-nos saber que não se verifica a
destruição total dos que morrem, e a fé assegura-
202
-nos que o Ressuscitado nunca nos abandonará.
Podemos, assim, impedir que a morte « envenene
a nossa vida, torne vãos os nossos afectos e nos
faça cair no vazio mais escuro».283 A Bíblia fala
de um Deus que nos criou por amor, e fez-nos
duma maneira tal que a nossa vida não termina
com a morte (cf. Sab 3, 2-3). São Paulo fala-nos
dum encontro com Cristo imediatamente depois
da morte: «tenho o desejo de partir e estar com
Cristo» (Flp 1, 23). Com Ele, espera-nos depois
da morte aquilo que Deus preparou para aqueles
que O amam (cf. 1 Cor 2, 9). De forma muito
bela, assim se exprime o prefácio da Missa dos
Defuntos: « Se a certeza da morte nos entristece,
conforta-nos a promessa da imortalidade. Para
os que crêem em Vós, Senhor, a vida não acaba,
apenas se transforma ». Com efeito, «os nossos
entes queridos não desapareceram nas trevas do
nada: a esperança assegura-nos que eles estão nas
mãos bondosas e vigorosas de Deus».284
257. Uma maneira de comunicarmos com os
seres queridos que morreram é rezar por eles.285
Diz a Bíblia que «rezar pelos mortos» é «santo e
piedoso» (2 Mac 12, 44.45). Rezar por eles «pode
não só ajudá-los, mas também tornar mais eficaz
a sua intercessão em nosso favor».286 O Apoca-
283 Francisco, Catequese (17 de Junho de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 18/VI/2015), 16. 284 Ibidem. 285 Cf. Catecismo da Igreja Católica, 958. 286 Ibidem.
203
lipse apresenta os mártires a interceder pelos que
sofrem injustiça na terra (cf. 6, 9-11), solidários
com este mundo em caminho. Alguns Santos,
antes de morrer, consolavam os seus entes queridos,
prometendo-lhes que estariam perto ajudando-os.
Santa Teresa de Lisieux sentia vontade
de continuar, do Céu, a fazer bem.287 E São Domingos
afirmava que «seria mais útil, depois de
morto (...), mais poderoso para obter graças».288
São laços de amor,289 porque «de modo nenhum
se interrompe a união dos que ainda caminham
sobre a terra com os irmãos que adormeceram
na paz de Cristo; mas (...) é reforçada pela comunicação
dos bens espirituais».290
258. Se aceitarmos a morte, podemos preparar-nos
para ela. O caminho é crescer no amor
para com aqueles que caminham connosco, até
ao dia em que «não haverá mais morte, nem luto,
nem pranto, nem dor» (Ap 21, 4). Deste modo
preparar-nos-emos também pera reencontrar
os nossos entes queridos que morreram. Assim
287 Cf. «Últimos colóquios: “Caderno Amarelo” da Madre
Inês» (17 de Julho de 1897): Opere complete (Cidade do Vaticano
1997), 1028. Nesta linha, é significativo o testemunho
das carmelitas de que Santa Teresa prometera que a sua partida
deste mundo havia de ser « como uma chuva de rosas» (Ibid., 9
de Junho de 1897: o. c., 991). 288 Jordão de Saxónia, Libellus de principiis Ordinis predicatorum,
93: Monumenta Historica Sancti Patris Nostri Dominici, XVI,
(Roma 1935), 69. 289 Cf. Catecismo da Igreja Católica, 957. 290 Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm sobre a Igreja Lumen
gentium, 49
204
como Jesus entregou o filho que tinha morrido à
sua mãe (cf. Lc 7, 15), de forma semelhante procederá
connosco. Não gastemos energias, detendo-nos
anos e anos no passado. Quanto melhor
vivermos nesta terra, tanto maior felicidade poderemos
partilhar com os nossos entes queridos
no céu. Quanto mais conseguirmos amadurecer
e crescer, tanto mais poderemos levar-lhes coisas
belas para o banquete celeste.
205
CAPÍTULO VII
REFORÇ AR A EDUC AÇÃO DOS FILHOS
259. Os pais incidem sempre, para bem ou
para mal, no desenvolvimento moral dos seus filhos.
Consequentemente, o melhor é aceitarem
esta responsabilidade inevitável e realizarem-na
de modo consciente, entusiasta, razoável e apropriado.
Uma vez que esta função educativa das
famílias é tão importante e se tornou muito complexa,
quero deter-me de modo especial neste
ponto.
Onde estão os filhos?
260. A família não pode renunciar a ser lugar de
apoio, acompanhamento, guia, embora tenha de
reinventar os seus métodos e encontrar novos recursos.
Precisa de considerar a que realidade quer
expor os seus filhos. Para isso não deve deixar de
se interrogar sobre quem se ocupa de lhes oferecer
diversão e entretenimento, quem entra nas
suas casas através dos écrans, a quem os entrega
para que os guie nos seus tempos livres. Só os
momentos que passamos com eles, falando com
simplicidade e carinho das coisas importantes, e
as possibilidades sadias que criamos para ocuparem
o seu tempo permitirão evitar uma nociva
invasão. Sempre faz falta vigilância; o abandono
206
nunca é sadio. Os pais devem orientar e alertar as
crianças e os adolescentes para saberem enfrentar
situações onde possa haver risco, por exemplo,
de agressões, abuso ou consumo de droga.
261. A obsessão, porém, não é educativa; e
também não é possível ter o controle de todas as
situações onde um filho poderá chegar a encontrar-se.
Vale aqui o princípio de que «o tempo
é superior ao espaço»,291 isto é, trata-se mais de
gerar processos que de dominar espaços. Se um
progenitor está obcecado com saber onde está
o seu filho e controlar todos os seus movimentos,
procurará apenas dominar o seu espaço. Mas,
desta forma, não o educará, não o reforçará, não
o preparará para enfrentar os desafios. O que interessa
acima de tudo é gerar no filho, com muito
amor, processos de amadurecimento da sua liberdade,
de preparação, de crescimento integral,
de cultivo da autêntica autonomia. Só assim este
filho terá em si mesmo os elementos de que precisa
para saber defender-se e agir com inteligência
e cautela em circunstâncias difíceis. Assim,
a grande questão não é onde está fisicamente o
filho, com quem está neste momento, mas onde
se encontra em sentido existencial, onde está posicionado
do ponto de vista das suas convicções,
dos seus objectivos, dos seus desejos, do seu projecto
de vida. Por isso, eis as perguntas que faço
aos pais: «Procuramos compreender “onde” os
291 Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro
de 2013), 222: AAS 105 (2013), 1111.
207
filhos verdadeiramente estão no seu caminho?
Sabemos onde está realmente a sua alma? E, sobretudo,
queremos sabê-lo?»292
262. Se a maturidade fosse apenas o desenvolvimento
de algo já contido no código genético,
quase nada poderíamos fazer. Mas não
é! A prudência, o recto juízo e a sensatez não
dependem de factores puramente quantitativos
de crescimento, mas de toda uma cadeia de elementos
que se sintetizam no íntimo da pessoa;
mais exactamente, no centro da sua liberdade. É
inevitável que cada filho nos surpreenda com os
projectos que brotam desta liberdade, que rompa
os nossos esquemas; e é bom que isto aconteça.
A educação envolve a tarefa de promover liberdades
responsáveis, que, nas encruzilhadas, saibam
optar com sensatez e inteligência; pessoas
que compreendam sem reservas que a sua vida e
a vida da sua comunidade estão nas suas mãos e
que esta liberdade é um dom imenso.
A formação ética dos filhos
263. Os pais necessitam também da escola para
assegurar uma instrução de base aos seus filhos,
mas a formação moral deles nunca a podem delegar
totalmente. O desenvolvimento afectivo e
ético duma pessoa requer uma experiência fundamental:
crer que os próprios pais são dignos de
292 Idem, Catequese (20 de Maio de 2015): L’Osservatore Romano
(ed. semanal portuguesa de 21/V/2015), 20.
208
confiança. Isto constitui uma responsabilidade
educativa: com o carinho e o testemunho, gerar
confiança nos filhos, inspirar-lhes um respeito
amoroso. Quando um filho deixa de sentir que
é precioso para seus pais, embora imperfeito, ou
deixa de notar que nutrem uma sincera preocupação
por ele, isto cria feridas profundas que causam
muitas dificuldades no seu amadurecimento.
Esta ausência, este abandono afectivo provoca
um sofrimento mais profundo do que a eventual
correcção recebida por uma má acção.
264. A tarefa dos pais inclui uma educação da
vontade e um desenvolvimento de hábitos bons
e tendências afectivas para o bem. Isto implica
que se apresentem como desejáveis os comportamentos
a aprender e as tendências a fazer maturar.
Mas trata-se sempre de um processo que
vai da imperfeição para uma plenitude maior. O
desejo de se adaptar à sociedade ou o hábito de
renunciar a uma satisfação imediata para se adequar
a uma norma e garantir uma boa convivência
já é, em si mesmo, um valor inicial que cria
disposições para se elevar depois rumo a valores
mais altos. A formação moral deveria realizar-se
sempre com métodos activos e com um diálogo
educativo que integre a sensibilidade e a linguagem
própria dos filhos. Além disso, esta formação
deve ser realizada de forma indutiva, de
modo que o filho possa chegar a descobrir por si
mesmo a importância de determinados valores,
princípios e normas, em vez de lhos impor como
verdades indiscutíveis.
209
265. Para agir bem, não basta «julgar de modo
adequado» ou saber com clareza aquilo que se
deve fazer, embora isso seja prioritário. Com
efeito, muitas vezes somos incoerentes com as
nossas próprias convicções, mesmo quando
são sólidas. Há ocasiões em que, por mais que
a consciência nos dite determinado juízo moral,
têm mais poder outras coisas que nos atraem; isto
acontece, se não conseguirmos que o bem individuado
pela mente se radique em nós como uma
profunda inclinação afectiva, como um gosto
pelo bem que pese mais do que outros atractivos
e nos faça perceber que aquilo que individuamos
como bem é tal também «para nós» aqui e agora.
Uma formação ética válida implica mostrar à
pessoa como é conveniente, para ela mesma, agir
bem. Muitas vezes, hoje, é ineficaz pedir algo que
exija esforço e renúncias, sem mostrar claramente
o bem que se poderia alcançar com isso.
266. É necessário maturar hábitos. Os próprios
hábitos adquiridos em criança têm uma função
positiva, ajudando a traduzir em comportamentos
externos sadios e estáveis os grandes valores
interiorizados. Uma pessoa pode possuir sentimentos
sociáveis e uma boa disposição para com
os outros, mas se não foi habituada durante muito
tempo, por insistência dos adultos, a dizer «por
favor», « com licença », «obrigado», a tal boa disposição
interior não se traduzirá facilmente nestas
expressões. O fortalecimento da vontade e a
repetição de determinadas acções constroem a
210
conduta moral; mas, sem a repetição consciente,
livre e elogiada de determinados comportamentos
bons, nunca se chega a educar tal conduta. As
motivações ou a atracção que sentimos por um
determinado valor, não se tornam uma virtude
sem estes actos adequadamente motivados.
267. A liberdade é algo de grandioso, mas podemos
perdê-la. A educação moral é cultivar a
liberdade através de propostas, motivações, aplicações
práticas, estímulos, prémios, exemplos,
modelos, símbolos, reflexões, exortações, revisões
do modo de agir e diálogos que ajudem as
pessoas a desenvolver aqueles princípios interiores
estáveis que movem a praticar espontaneamente
o bem. A virtude é uma convicção que
se transformou num princípio interior e estável
do agir. Assim, a vida virtuosa constrói a liberdade,
fortifica-a e educa-a, evitando que a pessoa se
torne escrava de inclinações compulsivas desumanizadoras
e anti-sociais. Com efeito, a própria
dignidade humana exige que cada um «proceda
segundo a própria consciência e por livre adesão,
ou seja, movido e induzido pessoalmente desde
dentro».293
O valor da sanção como estímulo
268. De igual modo, é indispensável sensibilizar
a criança e o adolescente para se darem con-
293 Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no
mundo contemporâneo Gaudium et spes, 17.
211
ta de que as más acções têm consequências. É
preciso despertar a capacidade de colocar-se no
lugar do outro e sentir pesar pelo seu sofrimento
originado pelo mal que lhe fez. Algumas sanções
– aos comportamentos anti-sociais agressivos –
podem parcialmente cumprir esta finalidade. É
importante orientar a criança, com firmeza, para
que peça perdão e repare o mal causado aos outros.
Quando o percurso educativo mostra os
seus frutos num amadurecimento da liberdade
pessoal, a dado momento o próprio filho come-
çará a reconhecer, com gratidão, que foi bom
para ele crescer numa família e também suportar
as exigências impostas por todo o processo formativo.
269. A correcção é um estímulo quando, ao
mesmo tempo, se apreciam e reconhecem os
esforços e quando o filho descobre que os seus
pais conservam viva uma paciente confiança.
Uma criança corrigida com amor sente-se tida
em consideração, percebe que é alguém, dá-se
conta de que seus pais reconhecem as suas potencialidades.
Isto não exige que os pais sejam
irrepreensíveis, mas que saibam reconhecer, com
humildade, os seus limites e mostrem o seu esforço
pessoal por ser melhores. Mas um testemunho
de que os filhos precisam da parte dos pais,
é que estes não se deixem levar pela ira. O filho,
que comete uma má acção, deve ser corrigido,
mas nunca como um inimigo ou como alguém
sobre quem se descarrega a própria agressivida-
212
de. Além disso, um adulto deve reconhecer que
algumas más acções têm a ver com as fragilidades
e os limites próprios da idade. Por isso, seria
nociva uma atitude constantemente punitiva,
porque não ajudaria a notar a diferente gravidade
das acções e provocaria desânimo e exaspera-
ção: «Vós, pais, não exaspereis os vossos filhos»
(Ef 6, 4; cf. Col 3, 21).
270. Condição fundamental é que a disciplina
não se transforme numa mutilação do desejo,
mas se torne um estímulo para ir sempre mais
além. Como integrar disciplina e dinamismo interior?
Como fazer para que a disciplina seja limite
construtivo do caminho que uma criança
deve empreender e não um muro que a aniquile
ou uma dimensão da educação que a iniba? É
preciso saber encontrar um equilíbrio entre dois
extremos igualmente nocivos: um seria pretender
construir um mundo à medida dos desejos do
filho, que cresceria sentindo-se sujeito de direitos
mas não de responsabilidades; o outro extremo
seria levá-lo a viver sem consciência da sua
dignidade, da sua identidade singular e dos seus
direitos, torturado pelos deveres e submetido à
realização dos desejos alheios.
Realismo paciente
271. A educação moral implica pedir a uma
criança ou a um jovem apenas aquelas coisas que
não representem, para eles, um sacrifício desproporcionado,
exigir-lhes apenas aquela dose
213
de esforço que não provoque ressentimento ou
acções puramente forçadas. O percurso normal
é propor pequenos passos que possam ser compreendidos,
aceites e apreciados, e impliquem
uma renúncia proporcionada. Caso contrário,
pedindo demasiado, nada se obtém. A pessoa,
logo que puder livrar-se da autoridade, provavelmente
deixará de praticar o bem.
272. Por vezes, a formação ética provoca desprezo
devido a experiências de abandono, desilusão,
carência afectiva, ou a uma má imagem dos
pais. Projectam-se sobre os valores éticos as imagens
distorcidas das figuras do pai e da mãe ou as
fraquezas dos adultos. Por isso, é preciso ajudar
os adolescentes a porem em prática a analogia:
os valores são cumpridos perfeitamente por algumas
pessoas muito exemplares, mas também
se realizam de forma imperfeita e em diferentes
graus. E uma vez que as resistências dos jovens
estão muito ligadas a experiências negativas, é
preciso ao mesmo tempo ajudá-los a percorrer
um itinerário de cura deste mundo interior ferido,
para poderem ter acesso à compreensão e à
reconciliação com as pessoas e com a sociedade.
273. Quando se propõe os valores, é preciso
fazê-lo pouco a pouco, avançar de maneira diferente
segundo a idade e as possibilidades concretas
das pessoas, sem pretender aplicar metodologias
rígidas e imutáveis. A psicologia e as
ciências da educação, com suas valiosas contribuições,
mostram que é necessário um processo
214
gradual para se conseguir mudanças de comportamento
e também que a liberdade precisa de ser
orientada e estimulada, porque, abandonando-a a
si mesma, não se garante a sua maturação. A liberdade
efectiva, real, é limitada e condicionada.
Não é uma pura capacidade de escolher o bem,
com total espontaneidade. Nem sempre se faz
uma distinção adequada entre acto « voluntário»
e acto «livre ». Uma pessoa pode querer algo de
mal com uma grande força de vontade, mas por
causa duma paixão irresistível ou duma educa-
ção deficiente. Neste caso, a sua decisão é fortemente
voluntária, não contradiz a inclinação da
sua vontade, mas não é livre, porque lhe resulta
quase impossível não escolher aquele mal. É o
que acontece com um dependente compulsivo
da droga: quando a quer, fá-lo com todas as suas
forças, mas está tão condicionado que, na hora,
não é capaz de tomar outra decisão. Portanto, a
sua decisão é voluntária, mas não livre. Não tem
sentido «deixá-lo escolher livremente », porque,
de facto, não pode escolher, e expô-lo à droga
só aumenta a dependência. Precisa da ajuda dos
outros e de um percurso educativo.
A vida familiar como contexto educativo
274. A família é a primeira escola dos valores
humanos, onde se aprende o bom uso da liberdade.
Há inclinações maturadas na infância, que
impregnam o íntimo duma pessoa e permanecem
toda a vida como uma inclinação favorável a um
valor ou como uma rejeição espontânea de certos
215
comportamentos. Muitas pessoas actuam a vida
inteira duma determinada forma, porque consideram
válida tal forma de agir, que assimilaram desde
a infância, como que por osmose: «Fui ensinado
assim»; «isto é o que me inculcaram». No âmbito
familiar, pode-se aprender também a discernir,
criticamente, as mensagens dos vários meios de
comunicação. Muitas vezes, infelizmente, alguns
programas televisivos ou algumas formas de publicidade
incidem negativamente e enfraquecem
valores recebidos na vida familiar.
275. Na época actual, em que reina a ansiedade
e a pressa tecnológica, uma tarefa importantíssima
das famílias é educar para a capacidade de
esperar. Não se trata de proibir as crianças de jogarem
com os dispositivos electrónicos, mas de
encontrar a forma de gerar nelas a capacidade de
diferenciarem as diversas lógicas e não aplicarem
a velocidade digital a todas as áreas da vida. O
adiamento não é negar o desejo, mas retardar a
sua satisfação. Quando as crianças ou os adolescentes
não são educados para aceitar que algumas
coisas devem esperar, tornam-se prepotentes,
submetem tudo à satisfação das suas necessidades
imediatas e crescem com o vício do «tudo e
súbito». Este é um grande engano que não favorece
a liberdade; antes, intoxica-a. Ao contrário,
quando se educa para aprender a adiar algumas
coisas e esperar o momento oportuno, ensina-
-se o que significa ser senhor de si mesmo, autónomo
face aos seus próprios impulsos. Assim,
216
quando a criança experimenta que pode cuidar
de si mesma, enriquece a própria auto-estima. Ao
mesmo tempo, isto ensina-lhe a respeitar a liberdade
dos outros. Naturalmente isto não significa
pretender das crianças que actuem como adultos,
mas também não se deve subestimar a sua capacidade
de crescer na maturação duma liberdade
responsável. Numa família sã, esta aprendizagem
realiza-se de forma normal através das exigências
da convivência.
276. A família é o âmbito da socialização primária,
porque é o primeiro lugar onde se aprende
a relacionar-se com o outro, a escutar, partilhar,
suportar, respeitar, ajudar, conviver. A tarefa educativa
deve levar a sentir o mundo e a sociedade
como « ambiente familiar»: é uma educação para
saber «habitar» mais além dos limites da própria
casa. No contexto familiar, ensina-se a recuperar
a proximidade, o cuidado, a saudação. É lá que
se rompe o primeiro círculo do egoísmo mortí-
fero, fazendo-nos reconhecer que vivemos junto
de outros, com outros, que são dignos da nossa
atenção, da nossa gentileza, do nosso afecto. Não
há vínculo social, sem esta primeira dimensão
quotidiana, quase microscópica: conviver na proximidade,
cruzando-nos nos vários momentos
do dia, preocupando-nos com aquilo que interessa
a todos, socorrendo-nos mutuamente nas
pequenas coisas do dia-a-dia. A família tem de
inventar, todos os dias, novas formas de promover
o reconhecimento mútuo.
217
277. No ambiente familiar, é possível também
repensar os hábitos de consumo, cuidando juntos
da casa comum: «A família é a protagonista de
uma ecologia integral, porque constitui o sujeito
social primário, que contém no seu interior os
dois princípios-base da civilização humana sobre
a terra: o princípio da comunhão e o princípio
da fecundidade ».294 De igual modo, podem ser
muito educativos os momentos difíceis e duros
da vida familiar. É o que acontece, por exemplo,
quando chega uma doença, porque, «diante da
doença, até em família surgem dificuldades, por
causa da debilidade humana. Mas, em geral, o
tempo da enfermidade faz aumentar a força dos
vínculos familiares. (...) Uma educação que negligencie
a sensibilidade pela doença humana, torna
árido o coração. E deixa os jovens “anestesiados”
em relação ao sofrimento do próximo, incapazes
de se confrontar com o sofrimento e de viver a
experiência do limite ».295
278. O encontro educativo entre pais e filhos
pode ser facilitado ou prejudicado pelas tecnologias
de comunicação e distracção, cada vez mais
sofisticadas. Bem utilizadas, podem ser úteis para
pôr em contacto os membros da família, que vivem
longe. Os contactos podem ser frequentes
294 Francisco, Catequese (30 de Setembro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 01/X/2015), 24. 295 Idem, Catequese (10 de Junho de 2015): L’Osservatore Romano
(ed. semanal portuguesa de 11/VI/2015), 16.
218
e ajudar a resolver dificuldades.296 Mas deve ficar
claro que não substituem nem preenchem a
necessidade do diálogo mais pessoal e profundo
que requer o contacto físico ou, pelo menos, a
voz da outra pessoa. Sabemos que, às vezes, estes
meios afastam em vez de aproximar, como
quando, na hora da refeição, cada um está concentrado
no seu telemóvel ou quando um dos
cônjuges adormece à espera do outro que passa
horas entretido com algum dispositivo electrónico.
Na família, também isto deve ser motivo de
diálogo e de acordos que permitam dar prioridade
ao encontro dos seus membros sem cair
em proibições insensatas. Em todo o caso, não
se podem ignorar os riscos das novas formas de
comunicação para as crianças e os adolescentes,
chegando às vezes a torná-los apáticos, desligados
do mundo real. Este « autismo tecnológico»
expõe-nos mais facilmente às manipulações daqueles
que procuram entrar na sua intimidade
com interesses egoístas.
279. Mas também não é bom que os pais se
tornem seres omnipotentes para seus filhos, de
modo que estes só poderiam confiar neles, porque
assim impedem um processo adequado de
socialização e amadurecimento afectivo. Para
tornar eficaz o prolongamento da paternidade
e da maternidade para uma realidade mais ampla,
« as comunidades cristãs são chamadas a dar
296 Cf. Relatio Finalis 2015, 67.
219
o seu apoio à missão educativa das famílias»,297
particularmente através da catequese de inicia-
ção. Para favorecer uma educação integral, precisamos
de «reavivar a aliança entre a família e a
comunidade cristã ».298 O Sínodo quis destacar a
importância das escolas católicas, que «realizam
uma função vital de ajuda aos pais no seu dever
de educar os filhos. (...) As escolas católicas deveriam
ser incentivadas na sua missão de ajudar
os alunos a crescer como adultos maduros que
podem ver o mundo através do olhar de amor de
Jesus e compreender a vida como uma chamada
para servir a Deus».299 Para isso «deve-se afirmar
resolutamente a liberdade da Igreja ensinar a
própria doutrina e o direito à objecção de consciência
por parte dos educadores».300
Sim à educação sexual
280. O Concílio Vaticano II apresentava a necessidade
de « uma educação sexual positiva e
prudente » oferecida às crianças e adolescentes « à
medida que vão crescendo» e «tendo em conta
os progressos da psicologia, pedagogia e didáctica
».301 Deveríamos perguntar-nos se as nossas
instituições educativas assumiram este desafio. É
difícil pensar na educação sexual num tempo em
297 Francisco, Catequese (20 de Maio de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 21/V/2015), 20. 298 Idem, Catequese (9 de Setembro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 10/IX/2015), 16. 299 Relatio Finalis 2015, 68. 300 Ibid., 58. 301 Decl. sobre a educação cristã Gravissimum educationis, 1.
220
que se tende a banalizar e empobrecer a sexualidade.
Só se poderia entender no contexto duma
educação para o amor, para a doação mútua; assim,
a linguagem da sexualidade não acabaria tristemente
empobrecida, mas esclarecida. É possí-
vel cultivar o impulso sexual num percurso de
conhecimento de si mesmo e no desenvolvimento
duma capacidade de autodomínio, que podem
ajudar a trazer à luz capacidades preciosas de alegria
e encontro amoroso.
281. A educação sexual oferece informação,
mas sem esquecer que as crianças e os jovens
ainda não alcançaram plena maturidade. A informação
deve chegar no momento apropriado
e de forma adequada à fase que vivem. Não é
útil saturá-los de dados, sem o desenvolvimento
do sentido crítico perante uma invasão de propostas,
perante a pornografia descontrolada e a
sobrecarga de estímulos que podem mutilar a sexualidade.
Os jovens devem poder dar-se conta
de que são bombardeados por mensagens que
não procuram o seu bem e o seu amadurecimento.
Faz falta ajudá-los a identificar e procurar as
influências positivas, ao mesmo tempo que se
afastam de tudo o que desfigura a sua capacidade
de amar. De igual modo, devemos aceitar que « a
necessidade duma linguagem nova e mais adequada
se apresenta especialmente no momento
de introduzir as crianças e os adolescentes no
tema da sexualidade ».302
302 Relatio Finalis 2015, 56.
221
282. Tem um valor imenso uma educação sexual
que cuide um são pudor, embora hoje alguns
considerem que é questão doutros tempos.
É uma defesa natural da pessoa que resguarda
a sua interioridade e evita ser transformada em
mero objecto. Sem o pudor, podemos reduzir o
afecto e a sexualidade a obsessões que nos concentram
apenas nos órgãos genitais, em morbosidades
que deformam a nossa capacidade de amar
e em várias formas de violência sexual que nos
levam a ser tratados de forma desumana ou a
prejudicar os outros.
283. Frequentemente a educação sexual concentra-se
no convite a «proteger-se », procurando
um «sexo seguro». Estas expressões transmitem
uma atitude negativa a respeito da finalidade
procriadora natural da sexualidade, como se um
possível filho fosse um inimigo de que é preciso
proteger-se. Deste modo promove-se a agressividade
narcisista, em vez do acolhimento. É irresponsável
qualquer convite aos adolescentes
para que brinquem com os seus corpos e desejos,
como se tivessem a maturidade, os valores,
o compromisso mútuo e os objectivos próprios
do matrimónio. Assim, são levianamente encorajados
a utilizar a outra pessoa como objecto de
experiências para compensar carências e grandes
limites. É importante, pelo contrário, ensinar um
percurso pelas diversas expressões do amor, o
cuidado mútuo, a ternura respeitosa, a comunica-
ção rica de sentido. Com efeito, tudo isto prepara
222
para uma doação íntegra e generosa de si mesmo
que se expressará, depois dum compromisso
público, na entrega dos corpos. Assim a união
sexual no matrimónio aparecerá como sinal dum
compromisso totalizante, enriquecido por todo o
caminho anterior.
284. É preciso não enganar os jovens, levando-os
a confundir os planos: a atracção « cria,
por um momento, a ilusão da “união”, mas, sem
amor, tal união deixa os desconhecidos tão separados
como antes».303 A linguagem do corpo
requer uma aprendizagem paciente que permita
interpretar e educar os próprios desejos em ordem
a uma entrega de verdade. Quando se pretende
entregar tudo duma vez, é possível que não
se entregue nada. Uma coisa é compreender as
fragilidades da idade ou as suas confusões, outra
é encorajar os adolescentes a prolongarem a imaturidade
da sua forma de amar. Mas, quem fala
hoje destas coisas? Quem é capaz de tomar os
jovens a sério? Quem os ajuda a preparar-se seriamente
para um amor grande e generoso? Não
se toma a sério a educação sexual.
285. A educação sexual deveria incluir também
o respeito e a valorização da diferença, que
mostra a cada um a possibilidade de superar o
confinamento nos próprios limites para se abrir
à aceitação do outro. Para além de compreensí-
303 Erich Fromm, The Art of Loving (Nova York 1956), 54.
223
veis dificuldades que cada um possa viver, é preciso
ajudar a aceitar o seu corpo como foi criado,
porque « uma lógica de domínio sobre o próprio
corpo transforma-se numa lógica, por vezes subtil,
de domínio sobre a criação. (...) Também é
necessário ter apreço pelo próprio corpo na sua
feminilidade ou masculinidade, para se poder reconhecer
a si mesmo no encontro com o outro
que é diferente. Assim, é possível aceitar com alegria
o dom específico do outro ou da outra, obra
de Deus criador, e enriquecer-se mutuamente ».304
Só perdendo o medo à diferença é que uma pessoa
pode chegar a libertar-se da imanência do
próprio ser e do êxtase por si mesmo. A educa-
ção sexual deve ajudar a aceitar o próprio corpo,
de modo que a pessoa não pretenda « cancelar a
diferença sexual, porque já não sabe confrontar-
-se com ela ».305
286. Também não se pode ignorar que, na configuração
do próprio modo de ser – feminino ou
masculino –, não confluem apenas factores biológicos
ou genéticos, mas uma multiplicidade de
elementos que têm a ver com o temperamento,
a história familiar, a cultura, as experiências vividas,
a formação recebida, as influências de amigos,
familiares e pessoas admiradas, e outras circunstâncias
concretas que exigem um esforço de
304 Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de Maio de 2015),
155. 305 Idem, Catequese (15 de Abril de 2015): L’Osservatore Romano
(ed. semanal portuguesa de 16/IV/2015), 20.
224
adaptação. É verdade que não podemos separar
o que é masculino e feminino da obra criada por
Deus, que é anterior a todas as nossas decisões
e experiências e na qual existem elementos biológicos
que é impossível ignorar. Mas também é
verdade que o masculino e o feminino não são
qualquer coisa de rígido. Por isso é possível, por
exemplo, que o modo de ser masculino do marido
possa adaptar-se de maneira flexível à condi-
ção laboral da esposa; o facto de assumir tarefas
domésticas ou alguns aspectos da criação dos filhos
não o torna menos masculino nem significa
um falimento, uma capitulação ou uma vergonha.
É preciso ajudar as crianças a aceitar como normais
estes «intercâmbios» sadios que não tiram
dignidade alguma à figura paterna. A rigidez torna-se
um exagero do masculino ou do feminino,
e não educa as crianças e os jovens para a reciprocidade
encarnada nas condições reais do matrimónio.
Tal rigidez, por seu lado, pode impedir
o desenvolvimento das capacidades de cada um,
tendo-se chegado ao ponto de considerar pouco
masculino dedicar-se à arte ou à dança e pouco
feminino desempenhar alguma tarefa de chefia.
Graças a Deus, isto mudou; mas, nalguns lugares,
certas ideias inadequadas continuam a condicionar
a legítima liberdade e a mutilar o autêntico
desenvolvimento da identidade concreta dos filhos
e das suas potencialidades.
Transmitir a fé
287. A educação dos filhos deve estar marcada
por um percurso de transmissão da fé, que se vê
225
dificultado pelo estilo de vida actual, pelos horá-
rios de trabalho, pela complexidade do mundo
actual, onde muitos têm um ritmo frenético para
poder sobreviver.306 Apesar disso, a família deve
continuar a ser lugar onde se ensina a perceber as
razões e a beleza da fé, a rezar e a servir o próximo.
Isto começa no baptismo, onde – como dizia
Santo Agostinho – as mães que levam os seus
filhos « cooperam no parto santo».307 Depois tem
início o percurso de crescimento desta vida nova.
A fé é dom de Deus, recebido no baptismo, e
não o resultado duma acção humana; mas os pais
são instrumentos de Deus para a sua maturação
e desenvolvimento. Por isso, « é bonito quando
as mães ensinam os filhos pequenos a enviar um
beijo a Jesus ou a Nossa Senhora. Quanta ternura
há nisto! Naquele momento, o coração das
crianças transforma-se em lugar de oração».308 A
transmissão da fé pressupõe que os pais vivam a
experiência real de confiar em Deus, de O procurar,
de precisar d’Ele, porque só assim « cada
geração contará à seguinte o louvor das obras [de
Deus] e todos proclamarão as [Suas] proezas»
(Sl 145/144, 4) e «o pai dará a conhecer aos seus
filhos a [Sua] fidelidade » (Is 38, 19). Isto requer
que imploremos a acção de Deus nos corações,
aonde não podemos chegar. O grão de mostarda,
semente tão pequenina, transforma-se num
306 Cf. Relatio Finalis 2015, 13-14. 307 De sancta virginitate, 7, 7: PL 40, 400. 308 Francisco, Catequese (26 de Agosto de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 27/VIII/2015), 12.
226
grande arbusto (cf. Mt 13, 31-32), e, deste modo,
reconhecemos a desproporção entre a acção e o
seu efeito. Sabemos, assim, que não somos proprietários
do dom, mas seus solícitos administradores.
Entretanto o nosso esforço criativo é uma
oferta que nos permite colaborar com a iniciativa
divina. Por isso, «tenha-se o cuidado de valorizar
os casais, as mães e os pais, como sujeitos activos
da catequese (...). De grande ajuda é a catequese
familiar, enquanto método eficaz para formar os
pais jovens e torná-los conscientes da sua missão
como evangelizadores da sua própria família ».309
288. A educação na fé sabe adaptar-se a cada filho,
porque os recursos aprendidos ou as receitas
às vezes não funcionam. As crianças precisam de
símbolos, gestos, narrações. Os adolescentes habitualmente
entram em crise com a autoridade e
com as normas, pelo que é conveniente estimular
as suas experiências pessoais de fé e oferecer-lhes
testemunhos luminosos que se imponham simplesmente
pela sua beleza. Os pais, que querem
acompanhar a fé dos seus filhos, estão atentos às
suas mudanças, porque sabem que a experiência
espiritual não se impõe, mas propõe-se à sua liberdade.
É fundamental que os filhos vejam de
maneira concreta que, para os seus pais, a oração
é realmente importante. Por isso, os momentos
de oração em família e as expressões da piedade
popular podem ter mais força evangelizadora
309 Relatio Finalis 2015, 89.
227
do que todas as catequeses e todos os discursos.
Quero exprimir a minha gratidão de forma especial
a todas as mães que rezam incessantemente,
como fazia Santa Mónica, pelos filhos que se
afastaram de Cristo.
289. O exercício de transmitir aos filhos a fé, no
sentido de facilitar a sua expressão e crescimento,
permite que a família se torne evangelizadora e,
espontaneamente, comece a transmiti-la a todos
os que se aproximam dela e mesmo fora do pró-
prio ambiente familiar. Os filhos que crescem em
famílias missionárias, frequentemente tornam-se
missionários, se os pais sabem viver esta tarefa
duma maneira tal que os outros os sintam vizinhos
e amigos, de tal modo que os filhos cresçam
neste estilo de relação com o mundo, sem renunciar
à sua fé nem às suas convicções. Lembremo-
-nos que o próprio Jesus comia e bebia com os
pecadores (cf. Mc 2, 16; Mt 11, 19), podia deter-se
a conversar com a Samaritana (cf. Jo 4, 7-26) e receber
de noite Nicodemos (cf. Jo 3, 1-21), deixava
ungir os seus pés por uma mulher prostituta (cf.
Lc 7, 36-50) e não hesitava em tocar os doentes
(cf. Mc 1, 40-45; 7, 33). E o mesmo faziam os seus
apóstolos, que não eram pessoas desprezadoras
dos outros, fechadas em pequenos grupos de eleitos,
isoladas da vida do seu povo. Enquanto as autoridades
os perseguiam, eles gozavam da simpatia
de todo o povo (cf. At 2, 47; 4, 21.33; 5, 13).
290. «A família torna-se sujeito da acção pastoral,
através do anúncio explícito do Evangelho
228
e do legado de múltiplas formas de testemunho,
nomeadamente a solidariedade com os pobres, a
abertura à diversidade das pessoas, a salvaguarda
da criação, a solidariedade moral e material para
com as outras famílias, especialmente para com
as mais necessitadas, o empenho na promoção do
bem comum, inclusive através da transformação
das estruturas sociais injustas, a partir do territó-
rio onde vive a família, praticando as obras corporais
e espirituais de misericórdia ».310 Isto deve
ser feito no contexto da convicção mais preciosa
dos cristãos: o amor do Pai que nos sustenta e
faz crescer, manifestado no dom total de Jesus
Cristo, vivo no meio de nós, que nos torna capazes
de enfrentar, unidos, todas as tempestades e
todas as etapas da vida. E, no coração de cada família,
deve ressoar também o querigma, a tempo
e fora de tempo, para iluminar o caminho. Todos
deveríamos poder dizer, a partir da vivência nas
nossas famílias: «Nós conhecemos o amor que
Deus nos tem, pois cremos nele » (1 Jo 4, 16). Só
a partir desta experiência é que a pastoral familiar
poderá conseguir que as famílias sejam simultaneamente
igrejas domésticas e fermento evangelizador
na sociedade.
310 Ibid., 93.
229
CAPÍTULO VIII
ACOMPANHAR, DISCERNIR
E INTEGRAR A FRAGILIDADE
291. Os Padres sinodais afirmaram que, embora
a Igreja reconheça que toda a ruptura do vínculo
matrimonial « é contra a vontade de Deus,
está consciente também da fragilidade de muitos
dos seus filhos».311 Iluminada pelo olhar de
Cristo, a Igreja «dirige-se com amor àqueles que
participam na sua vida de modo incompleto, reconhecendo
que a graça de Deus também actua
nas suas vidas, dando-lhes a coragem para fazer
o bem, cuidar com amor um do outro e estar
ao serviço da comunidade onde vivem e trabalham».312
Aliás esta atitude vê-se corroborada
no contexto de um Ano Jubilar dedicado à misericórdia.
Embora não cesse jamais de propor a
perfeição e convidar a uma resposta mais plena
a Deus, « a Igreja deve acompanhar, com atenção
e solicitude, os seus filhos mais frágeis, marcados
pelo amor ferido e extraviado, dando-lhes de
novo confiança e esperança, como a luz do farol
dum porto ou duma tocha acesa no meio do
povo para iluminar aqueles que perderam a rota
311 Relatio Synodi 2014, 24. 312 Ibid., 25.
230
ou estão no meio da tempestade ».313 Não esque-
çamos que, muitas vezes, o trabalho da Igreja é
semelhante ao de um hospital de campanha.
292. O matrimónio cristão, reflexo da união
entre Cristo e a sua Igreja, realiza-se plenamente
na união entre um homem e uma mulher, que se
doam reciprocamente com um amor exclusivo e
livre fidelidade, se pertencem até à morte e abrem
à transmissão da vida, consagrados pelo sacramento
que lhes confere a graça para se constituírem
como igreja doméstica e serem fermento
de vida nova para a sociedade. Algumas formas
de união contradizem radicalmente este ideal, enquanto
outras o realizam pelo menos de forma
parcial e analógica. Os Padres sinodais afirmaram
que a Igreja não deixa de valorizar os elementos
construtivos nas situações que ainda não correspondem
ou já não correspondem à sua doutrina
sobre o matrimónio.314
A gradualidade na pastoral
293. Os Padres consideraram também a situa-
ção particular de um matrimónio apenas civil ou
mesmo, ressalvadas as distâncias, da mera convivência:
« quando a união atinge uma notável
estabilidade através dum vínculo público e se caracteriza
por um afecto profundo, responsabilidade
para com a prole, capacidade de superar as
313 Ibid., 28. 314 Cf. ibid., 41.43; Relatio Finalis 2015, 70.
231
provas, pode ser vista como uma ocasião a acompanhar
na sua evolução para o sacramento do
matrimónio».315 Além disso, é preocupante que
hoje muitos jovens não tenham confiança no matrimónio
e convivam adiando indefinidamente o
compromisso conjugal, enquanto outros põem
termo ao compromisso assumido e imediatamente
instauram um novo. Aqueles « que fazem
parte da Igreja, precisam duma atenção pastoral
misericordiosa e encorajadora ».316 Com efeito,
aos pastores compete não só a promoção do matrimónio
cristão, mas também «o discernimento
pastoral das situações de muitas pessoas que deixaram
de viver esta realidade », para « entrar em
diálogo pastoral com elas a fim de evidenciar os
elementos da sua vida que possam levar a uma
maior abertura ao Evangelho do matrimónio na
sua plenitude ».317 No discernimento pastoral,
convém «identificar elementos que possam favorecer
a evangelização e o crescimento humano e
espiritual».318
294. «Muitas vezes a escolha do matrimónio civil
ou, em diversos casos, da simples convivência
não é motivada por preconceitos ou relutância
face à união sacramental, mas por situações culturais
ou contingentes».319 Nestas situações, po-
315 Relatio Synodi 2014, 27. 316 Ibid., 26. 317 Ibid., 41. 318 Ibidem. 319 Relatio Finalis 2015, 71.
232
derão ser valorizados aqueles sinais de amor que
refletem de algum modo o amor de Deus.320 Sabemos
que « está em contínuo crescimento o nú-
mero daqueles que, depois de terem vivido juntos
longo tempo, pedem a celebração do matrimónio
na Igreja. Muitas vezes, escolhe-se a simples convivência
por causa da mentalidade geral contrária
às instituições e aos compromissos definitivos,
mas também porque se espera adquirir maior segurança
existencial (emprego e salário fixo). Noutros
países, por último, as uniões de facto são muito
numerosas, não só pela rejeição dos valores da
família e do matrimónio, mas sobretudo pelo facto
de a cerimónia do casamento ser sentida como
um luxo, pelas condições sociais, de modo que a
miséria material impele a viver uniões de facto».321
Mas « é preciso enfrentar todas estas situações de
forma construtiva, procurando transformá-las em
oportunidades de caminho para a plenitude do
matrimónio e da família à luz do Evangelho. Trata-se
de acolhê-las e acompanhá-las com paciência
e delicadeza ».322 Foi o que Jesus fez com a Samaritana
(cf. Jo 4, 1-26): dirigiu uma palavra ao seu
desejo de amor verdadeiro, para a libertar de tudo
o que obscurecia a sua vida e guiá-la para a alegria
plena do Evangelho.
295. Nesta linha, São João Paulo II propunha
a chamada «lei da gradualidade », ciente de que o
320 Cf. ibidem. 321 Relatio Synodi 2014, 42. 322 Ibid., 43.
233
ser humano « conhece, ama e cumpre o bem moral
segundo diversas etapas de crescimento».323
Não é uma « gradualidade da lei», mas uma gradualidade
no exercício prudencial dos atos livres
em sujeitos que não estão em condições de compreender,
apreciar ou praticar plenamente as exigências
objectivas da lei. Com efeito, também a
lei é dom de Deus, que indica o caminho; um
dom para todos sem excepção, que se pode viver
com a força da graça, embora cada ser humano
« avance gradualmente com a progressiva integração
dos dons de Deus e das exigências do seu
amor definitivo e absoluto em toda a vida pessoal
e social».324
O discernimento das situações chamadas
«irregulares »325
296. O Sínodo referiu-se a diferentes situações
de fragilidade ou imperfeição. A este respeito, quero
lembrar aqui uma coisa que pretendi propor,
com clareza, a toda a Igreja para não nos equivocarmos
no caminho: «Duas lógicas percorrem
toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar.
(...) O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém
em diante, é sempre o de Jesus: o caminho
da misericórdia e da integração. (...) O caminho da
Igreja é o de não condenar eternamente ninguém;
323 Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de
1981), 34: AAS 74 (1982), 123. 324 Ibid., 9: o. c., 90. 325 Cf. Francisco, Catequese (24 de Junho de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 25/VI/2015), 12.
234
derramar a misericórdia de Deus sobre todas as
pessoas que a pedem com coração sincero (...).
Porque a caridade verdadeira é sempre imerecida,
incondicional e gratuita ».326 Por isso, «temos de
evitar juízos que não tenham em conta a complexidade
das diversas situações e é necessário estar
atentos ao modo em que as pessoas vivem e sofrem
por causa da sua condição».327
297. Trata-se de integrar a todos, deve-se ajudar
cada um a encontrar a sua própria maneira
de participar na comunidade eclesial, para que se
sinta objecto duma misericórdia «imerecida, incondicional
e gratuita ». Ninguém pode ser condenado
para sempre, porque esta não é a lógica
do Evangelho! Não me refiro só aos divorciados
que vivem numa nova união, mas a todos seja
qual for a situação em que se encontrem. Obviamente,
se alguém ostenta um pecado objectivo
como se fizesse parte do ideal cristão ou quer
impor algo diferente do que a Igreja ensina, não
pode pretender dar catequese ou pregar e, neste
sentido, há algo que o separa da comunidade (cf.
Mt 18, 17). Precisa de voltar a ouvir o anúncio do
Evangelho e o convite à conversão. Mas, mesmo
para esta pessoa, pode haver alguma maneira de
participar na vida da comunidade, quer em tarefas
sociais, quer em reuniões de oração, quer na
forma que lhe possa sugerir a sua própria inicia-
326 Idem, Homilia na Eucaristia celebrada com os novos Cardeais
(15 de Fevereiro de 2015): AAS 107 (2015), 257. 327 Relatio Finalis 2015, 51.
235
tiva discernida juntamente com o pastor. Quanto
ao modo de tratar as várias situações chamadas
«irregulares», os Padres sinodais chegaram a um
consenso geral que eu sustento: «Na abordagem
pastoral das pessoas que contraíram matrimónio
civil, que são divorciadas novamente casadas, ou
que simplesmente convivem, compete à Igreja
revelar-lhes a pedagogia divina da graça nas suas
vidas e ajudá-las a alcançar a plenitude do desígnio
que Deus tem para elas»,328 sempre possível
com a força do Espírito Santo.
298. Os divorciados que vivem numa nova
união, por exemplo, podem encontrar-se em situações
muito diferentes, que não devem ser
catalogadas ou encerradas em afirmações demasiado
rígidas, sem deixar espaço para um adequado
discernimento pessoal e pastoral. Uma coisa
é uma segunda união consolidada no tempo,
com novos filhos, com fidelidade comprovada,
dedicação generosa, compromisso cristão, consciência
da irregularidade da sua situação e grande
dificuldade para voltar atrás sem sentir, em consciência,
que se cairia em novas culpas. A Igreja
reconhece a existência de situações em que «o
homem e a mulher, por motivos sérios – como,
por exemplo, a educação dos filhos – não se podem
separar».329 Há também o caso daqueles que
328 Relatio Synodi 2014, 25. 329 João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro
de 1981), 84: AAS 74 (1982), 186. Nestas situações,
muitos, conhecendo e aceitando a possibilidade de conviver
236
fizeram grandes esforços para salvar o primeiro
matrimónio e sofreram um abandono injusto, ou
o caso daqueles que « contraíram uma segunda
união em vista da educação dos filhos, e, às vezes,
estão subjectivamente certos em consciência
de que o precedente matrimónio, irremediavelmente
destruído, nunca tinha sido válido».330
Coisa diferente, porém, é uma nova união que
vem dum divórcio recente, com todas as consequências
de sofrimento e confusão que afetam os
filhos e famílias inteiras, ou a situação de alguém
que faltou repetidamente aos seus compromissos
familiares. Deve ficar claro que este não é o ideal
que o Evangelho propõe para o matrimónio e
a família. Os Padres sinodais afirmaram que o
discernimento dos pastores sempre se deve fazer
« distinguindo adequadamente »,331 com um olhar
que discirna bem as situações.332 Sabemos que
não existem «receitas simples».333
299. Acolho as considerações de muitos Padres
sinodais que quiseram afirmar que «os bap-
« como irmão e irmã » que a Igreja lhes oferece, assinalam que,
se faltam algumas expressões de intimidade, «não raro se põe
em risco a fidelidade e se compromete o bem da prole » (Conc.
Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo
Gaudium et spes, 51). 330 João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro
de 1981), 84: AAS 74 (1982), 186. 331 Relatio Synodi 2014, 26. 332 Cf. ibid., 45. 333 Bento XVI, Discurso no VII Encontro Mundial das Famílias,
em Milão (2 de Junho de 2012), resposta 5: Insegnamenti,
8/1 (2012), 691; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa
de 09/VI/2012), 11.
237
tizados que se divorciaram e voltaram a casar
civilmente devem ser mais integrados na comunidade
cristã sob as diferentes formas possíveis,
evitando toda a ocasião de escândalo. A lógica
da integração é a chave do seu acompanhamento
pastoral, para saberem que não só pertencem
ao Corpo de Cristo que é a Igreja, mas podem
também ter disso mesmo uma experiência feliz
e fecunda. São baptizados, são irmãos e irmãs,
o Espírito Santo derrama neles dons e carismas
para o bem de todos. A sua participação pode exprimir-se
em diferentes serviços eclesiais, sendo
necessário, por isso, discernir quais das diferentes
formas de exclusão actualmente praticadas
em âmbito litúrgico, pastoral, educativo e institucional
possam ser superadas. Não só não devem
sentir-se excomungados, mas podem viver e
maturar como membros vivos da Igreja, sentindo-a
como uma mãe que sempre os acolhe, cuida
afectuosamente deles e encoraja-os no caminho
da vida e do Evangelho. Esta integração é necessária
também para o cuidado e a educação cristã
dos seus filhos, que devem ser considerados o
elemento mais importante ».334
300. Se se tiver em conta a variedade inumerável
de situações concretas, como as que mencionamos
antes, é compreensível que se não devia
esperar do Sínodo ou desta Exortação uma
nova normativa geral de tipo canónico, aplicável
a todos os casos. É possível apenas um novo
334 Relatio Finalis 2015, 84.
238
encorajamento a um responsável discernimento
pessoal e pastoral dos casos particulares, que deveria
reconhecer: uma vez que «o grau de responsabilidade
não é igual em todos os casos»,335
as consequências ou efeitos duma norma não devem
necessariamente ser sempre os mesmos.336
Os sacerdotes têm o dever de « acompanhar as
pessoas interessadas pelo caminho do discernimento
segundo a doutrina da Igreja e as orienta-
ções do bispo. Neste processo, será útil fazer um
exame de consciência, através de momentos de
reflexão e arrependimento. Os divorciados novamente
casados deveriam questionar-se como se
comportaram com os seus filhos, quando a união
conjugal entrou em crise; se houve tentativas
de reconciliação; como é a situação do cônjuge
abandonado; que consequências têm a nova rela-
ção sobre o resto da família e a comunidade dos
fiéis; que exemplo oferece ela aos jovens que se
devem preparar para o matrimónio. Uma reflexão
sincera pode reforçar a confiança na misericórdia
de Deus que não é negada a ninguém».337
Trata-se dum itinerário de acompanhamento e
discernimento que «orienta estes fiéis na tomada
de consciência da sua situação diante de Deus. O
diálogo com o sacerdote, no foro interno, con-
335 Ibid., 51. 336 E também não devem ser sempre os mesmos na
aplicação da disciplina sacramental, dado que o discernimento
pode reconhecer que, numa situação particular, não há culpa
grave. Neste caso, aplica-se o que afirmei noutro documento: cf.
Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 44.47:
AAS 105 (2013), 1038-1040.
337 Relatio Finalis 2015, 85.
239
corre para a formação dum juízo correto sobre
aquilo que dificulta a possibilidade duma participação
mais plena na vida da Igreja e sobre os passos
que a podem favorecer e fazer crescer. Uma
vez que na própria lei não há gradualidade (cf. Familiaris
consortio, 34), este discernimento não poderá
jamais prescindir das exigências evangélicas
de verdade e caridade propostas pela Igreja. Para
que isto aconteça, devem garantir-se as necessá-
rias condições de humildade, privacidade, amor à
Igreja e à sua doutrina, na busca sincera da vontade
de Deus e no desejo de chegar a uma resposta
mais perfeita à mesma ».338 Estas atitudes são fundamentais
para evitar o grave risco de mensagens
equivocadas, como a ideia de que algum sacerdote
pode conceder rapidamente « excepções», ou
de que há pessoas que podem obter privilégios
sacramentais em troca de favores. Quando uma
pessoa responsável e discreta, que não pretende
colocar os seus desejos acima do bem comum
da Igreja, se encontra com um pastor que sabe
reconhecer a seriedade da questão que tem entre
mãos, evita-se o risco de que um certo discernimento
leve a pensar que a Igreja sustente uma
moral dupla.
As circunstâncias atenuantes no discernimento
pastoral
301. Para se entender adequadamente por que
é possível e necessário um discernimento espe-
338 Ibid., 86.
240
cial nalgumas situações chamadas «irregulares»,
há uma questão que sempre se deve ter em conta,
para nunca se pensar que se pretende diminuir
as exigências do Evangelho. A Igreja possui uma
sólida reflexão sobre os condicionamentos e as
circunstâncias atenuantes. Por isso, já não é possível
dizer que todos os que estão numa situação
chamada «irregular» vivem em estado de pecado
mortal, privados da graça santificante. Os limites
não dependem simplesmente dum eventual
desconhecimento da norma. Uma pessoa, mesmo
conhecendo bem a norma, pode ter grande
dificuldade em compreender «os valores inerentes
à norma »339 ou pode encontrar-se em condições
concretas que não lhe permitem agir de
maneira diferente e tomar outras decisões sem
uma nova culpa. Como bem se expressaram os
Padres sinodais, «pode haver factores que limitam
a capacidade de decisão».340 E São Tomás de
Aquino reconhecia que alguém pode ter a graça
e a caridade, mas é incapaz de exercitar bem alguma
das virtudes,341 pelo que, embora possua
todas as virtudes morais infusas, não manifesta
com clareza a existência de alguma delas, porque
a prática exterior dessa virtude está dificultada:
«Diz-se que alguns Santos não têm certas virtudes,
enquanto experimentam dificuldade em pô-
339 João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro
de 1981), 33: AAS 74 (1982), 121. 340 Relatio Finalis 2015, 51. 341 Cf. Summa theologiae I-II, q. 65, art. 3, ad. 2; De malo, q.
2, a. 2.
241
-las em acto, embora tenham os hábitos de todas
as virtudes».342
302. A propósito destes condicionamentos, o
Catecismo da Igreja Católica exprime-se de maneira
categórica: «A imputabilidade e responsabilidade
dum acto podem ser diminuídas, e até anuladas,
pela ignorância, a inadvertência, a violência, o
medo, os hábitos, as afeições desordenadas e outros
factores psíquicos ou sociais».343 E, noutro
parágrafo, refere-se novamente às circunstâncias
que atenuam a responsabilidade moral, nomeadamente
« a imaturidade afectiva, a força de há-
bitos contraídos, o estado de angústia e outros
fatores psíquicos ou sociais».344 Por esta razão,
um juízo negativo sobre uma situação objetiva
não implica um juízo sobre a imputabilidade ou
a culpabilidade da pessoa envolvida.345 No contexto
destas convicções, considero muito apropriado
aquilo que muitos Padres sinodais quiseram
sustentar: «Em determinadas circunstâncias,
342 Summa theologiae I-II, q. 65, art. 3, ad. 3. 343 N. 1735. 344 N. 2352; cf. Congr. para a Doutrina da Fé, Decl.
sobre a eutanásia Iura et bona (5 de Maio de 1980), II: AAS 72
(1980), 546. João Paulo II, ao criticar algumas leituras da categoria
«opção fundamental», reconhecia que «podem, sem dúvida,
verificar-se situações muito complexas e obscuras sob o ponto
de vista psicológico, que influem na imputabilidade subjectiva
do pecador» [Exort. ap. Reconciliatio et paenitentia (2 de Dezembro
de 1984), 17: AAS 77 (1985), 223]. 345 Cf. Pont. Conselho para os Textos Legislativos,
Decl. sobre A admissibilidade à Sagrada Comunhão dos divorciados
que voltaram a casar (24 de Junho de 2000), 2.
242
as pessoas encontram grandes dificuldades para
agir de maneira diferente. (...) O discernimento
pastoral, embora tendo em conta a consciência
rectamente formada das pessoas, deve ocupar-
-se destas situações. As próprias consequências
dos actos praticados não são necessariamente as
mesmas em todos os casos».346
303. A partir do reconhecimento do peso dos
condicionamentos concretos, podemos acrescentar
que a consciência das pessoas deve ser
melhor incorporada na práxis da Igreja em algumas
situações que não realizam objetivamente a
nossa conceção do matrimónio. É claro que devemos
incentivar o amadurecimento duma consciência
esclarecida, formada e acompanhada pelo
discernimento responsável e sério do pastor, e
propor uma confiança cada vez maior na graça.
Mas esta consciência pode reconhecer não só que
uma situação não corresponde objectivamente à
proposta geral do Evangelho, mas reconhecer
também, com sinceridade e honestidade, aquilo
que, por agora, é a resposta generosa que se pode
oferecer a Deus e descobrir com certa segurança
moral que esta é a doação que o próprio Deus
está a pedir no meio da complexidade concreta
dos limites, embora não seja ainda plenamente
o ideal objectivo. Em todo o caso, lembremo-
-nos que este discernimento é dinâmico e deve
permanecer sempre aberto para novas etapas de
346 Relatio Finalis 2015, 85.
243
crescimento e novas decisões que permitam realizar
o ideal de forma mais completa.
As normas e o discernimento
304. É mesquinho deter-se a considerar apenas
se o agir duma pessoa corresponde ou não a uma
lei ou norma geral, porque isto não basta para discernir
e assegurar uma plena fidelidade a Deus na
existência concreta dum ser humano. Peço encarecidamente
que nos lembremos sempre de algo
que ensina São Tomás de Aquino e aprendamos a
assimilá-lo no discernimento pastoral: «Embora
nos princípios gerais tenhamos o carácter necessário,
todavia à medida que se abordam os casos
particulares, aumenta a indeterminação (…). No
âmbito da acção, a verdade ou a rectidão prática
não são iguais em todas as aplicações particulares,
mas apenas nos princípios gerais; e, naqueles
onde a rectidão é idêntica nas próprias acções,
esta não é igualmente conhecida por todos. (...)
Quanto mais se desce ao particular, tanto mais
aumenta a indeterminação».347 É verdade que as
normas gerais apresentam um bem que nunca se
deve ignorar nem transcurar, mas, na sua formulação,
não podem abarcar absolutamente todas
as situações particulares. Ao mesmo tempo é
preciso afirmar que, precisamente por esta razão,
aquilo que faz parte dum discernimento prático
duma situação particular não pode ser elevado
347 Summa theologiae I-II, q. 94, art. 4.
244
à categoria de norma. Isto não só geraria uma
casuística insuportável, mas também colocaria
em risco os valores que se devem preservar com
particular cuidado.348
305. Por isso, um pastor não pode sentir-se satisfeito
apenas aplicando leis morais àqueles que
vivem em situações «irregulares», como se fossem
pedras que se atiram contra a vida das pessoas.
É o caso dos corações fechados, que muitas
vezes se escondem até por detrás dos ensinamentos
da Igreja «para se sentar na cátedra de Moisés
e julgar, às vezes com superioridade e superficialidade,
os casos difíceis e as famílias feridas».349
Na mesma linha se pronunciou a Comissão Teológica
Internacional: «A lei natural não pode ser
apresentada como um conjunto já constituído de
regras que se impõem a priori ao sujeito moral,
mas é uma fonte de inspiração objectiva para o
seu processo, eminentemente pessoal, de tomada
de decisão».350 Por causa dos condicionalismos
ou dos factores atenuantes, é possível que uma
pessoa, no meio duma situação objectiva de pe-
348 Referindo-se ao conhecimento geral da norma e ao
conhecimento particular do discernimento prático, São Tomás
chega a dizer que, «se existir apenas um dos dois conhecimentos,
é preferível que este seja o conhecimento da realidade particular
porque está mais próximo do agir» [Sententia libri Ethicorum,
VI, 6 (ed. Leonina, t. 47, 354)].
349 Francisco, Discurso no encerramento da XIV Assembleia
Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (24 de Outubro de 2015):
L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 29/X/2015), 9. 350 À procura duma ética universal: um novo olhar sobre a lei natural
(2009), 59.
245
cado – mas subjectivamente não seja culpável ou
não o seja plenamente –, possa viver em graça
de Deus, possa amar e possa também crescer na
vida de graça e de caridade, recebendo para isso
a ajuda da Igreja.351 O discernimento deve ajudar
a encontrar os caminhos possíveis de resposta a
Deus e de crescimento no meio dos limites. Por
pensar que tudo seja branco ou preto, às vezes
fechamos o caminho da graça e do crescimento
e desencorajamos percursos de santificação que
dão glória a Deus. Lembremo-nos de que « um
pequeno passo, no meio de grandes limitações
humanas, pode ser mais agradável a Deus do que
a vida externamente correcta de quem transcorre
os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades».352
A pastoral concreta dos ministros e das comunidades
não pode deixar de incorporar esta realidade.
306. Em toda e qualquer circunstância, perante
quem tenha dificuldade em viver plenamente a lei
de Deus, deve ressoar o convite a percorrer a via
caritatis. A caridade fraterna é a primeira lei dos
cristãos (cf. Jo 15, 12; Gal 5, 14). Não esqueçamos
351 Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos
sacramentos. Por isso, « aos sacerdotes, lembro que o confessionário
não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da
misericórdia do Senhor» [Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium
(24 de Novembro de 2013), 44: AAS 105 (2013), 1038]. E
de igual modo assinalo que a Eucaristia «não é um prémio para
os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os
fracos» [Ibid., 47: o. c., 1039]. 352 Ibid., 44: o. c., 1038-1039.
246
a promessa feita na Sagrada Escritura: «Acima
de tudo, mantende entre vós uma intensa caridade,
porque o amor cobre a multidão de pecados»
(1 Ped 4, 8); «redime o teu pecado pela justiça; e
as tuas iniquidades, pela piedade para com os infelizes»
(Dn 4, 24); « a água apaga o fogo ardente,
e a esmola expia o pecado» (Sir 3, 30). O mesmo
ensina também Santo Agostinho: «Tal como, em
perigo de incêndio, correríamos a buscar água
para o apagar (...), o mesmo deveríamos fazer
quando nos turvamos porque, da nossa palha,
irrompeu a chama do pecado; assim, quando se
nos proporciona a ocasião de uma obra cheia de
misericórdia, alegremo-nos por ela como se fosse
uma fonte que nos é oferecida e da qual podemos
tomar a água para extinguir o incêndio».353
A lógica da misericórdia pastoral
307. Para evitar qualquer interpretação tendenciosa,
lembro que, de modo algum, deve a Igreja
renunciar a propor o ideal pleno do matrimónio,
o projecto de Deus em toda a sua grandeza: «É
preciso encorajar os jovens baptizados para não
hesitarem perante a riqueza que o sacramento do
matrimónio oferece aos seus projectos de amor,
com a força do apoio que recebem da graça de
Cristo e da possibilidade de participar plenamen-
353 De catechizandis rudibus, I, 14, 22: PL 40, 327; cf. Francisco,
Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013),
193: AAS 105 (2013), 1101.
247
te na vida da Igreja ».354 A tibieza, qualquer forma
de relativismo ou um excessivo respeito na hora
de propor o sacramento seriam uma falta de fidelidade
ao Evangelho e também uma falta de amor
da Igreja pelos próprios jovens. A compreensão
pelas situações excepcionais não implica jamais
esconder a luz do ideal mais pleno, nem propor
menos de quanto Jesus oferece ao ser humano.
Hoje, mais importante do que uma pastoral dos
falimentos é o esforço pastoral para consolidar
os matrimónios e assim evitar as rupturas.
308. Todavia, da nossa consciência do peso
das circunstâncias atenuantes – psicológicas,
históricas e mesmo biológicas – conclui-se que,
«sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso
acompanhar, com misericórdia e paciência,
as possíveis etapas de crescimento das pessoas,
que se vão construindo dia após dia », dando
lugar à «misericórdia do Senhor que nos incentiva
a praticar o bem possível».355 Compreendo
aqueles que preferem uma pastoral mais rígida,
que não dê lugar a confusão alguma; mas creio
sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja
atenta ao bem que o Espírito derrama no meio
da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo
que expressa claramente a sua doutrina objectiva,
«não renuncia ao bem possível, ainda que corra
354 Relatio Synodi 2014, 26. 355 Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro
de 2013), 44: AAS 105 (2013), 1038.
248
o risco de sujar-se com a lama da estrada ».356 Os
pastores, que propõem aos fiéis o ideal pleno do
Evangelho e a doutrina da Igreja, devem ajudá-
-los também a assumir a lógica da compaixão pelas
pessoas frágeis e evitar perseguições ou juízos
demasiado duros e impacientes. O próprio Evangelho
exige que não julguemos nem condenemos
(cf. Mt 7, 1; Lc 6, 37). Jesus « espera que renunciemos
a procurar aqueles abrigos pessoais ou comunitários
que permitem manter-nos à distância
do nó do drama humano, a fim de aceitarmos
verdadeiramente entrar em contacto com a vida
concreta dos outros e conhecermos a força da
ternura. Quando o fazemos, a vida complica-se
sempre maravilhosamente ».357
309. É providencial que estas reflexões sejam
desenvolvidas no contexto de um Ano Jubilar
dedicado à misericórdia, porque, também perante
as mais diversas situações que afectam a famí-
lia, « a Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia
de Deus, coração pulsante do Evangelho,
que por meio dela deve chegar ao coração e à
mente de cada pessoa. A Esposa de Cristo assume
o comportamento do Filho de Deus, que vai
ao encontro de todos sem excluir ninguém».358
Ela bem sabe que o próprio Jesus Se apresenta
356 Ibid., 45: o. c., 1039. 357 Ibid., 270: o. c., 1128. 358 Idem, Bula Misericordiae Vultus (11 de Abril de 2015),
12: AAS 107 (2015), 407.
249
como Pastor de cem ovelhas, não de noventa e
nove; e quer tê-las todas. A partir desta consciência,
tornar-se-á possível que « a todos, crentes e
afastados, possa chegar o bálsamo da misericórdia
como sinal do Reino de Deus já presente no
meio de nós».359
310. Não podemos esquecer que « a misericórdia
não é apenas o agir do Pai, mas torna-se o
critério para individuar quem são os seus verdadeiros
filhos. Em suma, somos chamados a viver
de misericórdia, porque, primeiro, foi usada
misericórdia para connosco».360 Não é uma proposta
romântica nem uma resposta débil ao amor
de Deus, que sempre quer promover as pessoas,
porque « a arquitrave que suporta a vida da Igreja
é a misericórdia. Toda a sua acção pastoral deveria
estar envolvida pela ternura com que se dirige
aos crentes; no anúncio e testemunho que
oferece ao mundo, nada pode ser desprovido de
misericórdia ».361 É verdade que, às vezes, « agimos
como controladores da graça e não como
facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega;
é a casa paterna, onde há lugar para todos com a
sua vida fadigosa ».362
311. O ensino da teologia moral não deveria
deixar de assumir estas considerações, porque,
359 Ibid., 5: o. c., 402. 360 Ibid., 9: o. c., 405. 361 Ibid., 10: o. c., 406. 362 Idem, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de
2013), 47: AAS 105 (2013), 1040.
250
embora seja verdade que é preciso ter cuidado
com a integralidade da doutrina moral da Igreja,
todavia sempre se deve pôr um cuidado especial
em evidenciar e encorajar os valores mais altos e
centrais do Evangelho,363 particularmente o primado
da caridade como resposta à iniciativa gratuita
do amor de Deus. Às vezes custa-nos muito
dar lugar, na pastoral, ao amor incondicional de
Deus.364 Pomos tantas condições à misericórdia
que a esvaziamos de sentido concreto e real significado,
e esta é a pior maneira de aguar o Evangelho.
É verdade, por exemplo, que a misericórdia
não exclui a justiça e a verdade, mas, antes de
tudo, temos de dizer que a misericórdia é a plenitude
da justiça e a manifestação mais luminosa
da verdade de Deus. Por isso, convém sempre
considerar «inadequada qualquer concepção teológica
que, em última instância, ponha em dúvida
a própria omnipotência de Deus e, especialmente,
a sua misericórdia ».365
363 Cf. ibid., 36-37: o. c., 1035. 364 Talvez por escrúpulo, oculto por detrás dum grande
desejo de fidelidade à verdade, alguns sacerdotes exigem aos
penitentes um propósito de emenda claro sem sombra alguma,
fazendo com que a misericórdia se esfume debaixo da busca
duma justiça supostamente pura. Por isso vale a pena recordar
o ensinamento de São João Paulo II quando afirmou que a previsibilidade
duma nova queda «não prejudica a autenticidade
do propósito» [Carta ao Card. William W. Baum por ocasião do curso
sobre o foro interno, organizado pela Penitenciaria Apostólica (22 de
Março de 1996), 5: Insegnamenti, 19/1 (1996), 589; L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 30/III/1996), 3].
365 Comissão Teológica Internacional, A esperança de
salvação para as crianças que morrem sem baptismo (19 de Abril de
2007), 2.
251
312. Isto fornece-nos um quadro e um clima
que nos impedem de desenvolver uma moral fria
de escritório quando nos ocupamos dos temas
mais delicados, situando-nos, antes, no contexto
dum discernimento pastoral cheio de amor
misericordioso, que sempre se inclina para compreender,
perdoar, acompanhar, esperar e sobretudo
integrar. Esta é a lógica que deve prevalecer
na Igreja, para «fazer a experiência de abrir
o coração àqueles que vivem nas mais variadas
periferias existenciais».
366 Convido os fiéis, que
vivem situações complexas, a aproximar-se com
confiança para falar com os seus pastores ou
com leigos que vivem entregues ao Senhor. Nem
sempre encontrarão neles uma confirmação das
próprias ideias ou desejos, mas seguramente receberão
uma luz que lhes permita compreender
melhor o que está a acontecer e poderão descobrir
um caminho de amadurecimento pessoal.
E convido os pastores a escutar, com carinho e
serenidade, com o desejo sincero de entrar no
coração do drama das pessoas e compreender o
seu ponto de vista, para ajudá-las a viver melhor
e reconhecer o seu lugar na Igreja.
366 Francisco, Bula Misericordiae Vultus (11 de Abril de
2015), 15: AAS 107 (2015), 409.
253
CAPÍTULO IX
ESPIRITUALIDADE CONJUGAL
E FAMILIAR
313. O amor assume matizes diferentes, segundo
o estado de vida a que cada um foi chamado.
Várias décadas atrás, o Concílio Vaticano II, a
propósito do apostolado dos leigos, punha em
realce a espiritualidade que brota da vida familiar.
Dizia que a espiritualidade dos leigos «deverá assumir
características especiais» próprias, nomeadamente
a partir do « estado do matrimónio e da
família »,367 e que os cuidados familiares não devem
ser alheios ao seu estilo de vida espiritual.368
Por isso, vale a pena deter-nos brevemente a descrever
algumas características fundamentais desta
espiritualidade específica que se desenrola no
dinamismo das relações da vida familiar.
Espiritualidade da comunhão sobrenatural
314. Sempre falamos da inabitação de Deus no
coração da pessoa que vive na sua graça. Hoje
podemos dizer também que a Trindade está presente
no templo da comunhão matrimonial. As-
367 Decr. sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem,
4.
368 Cf. ibidem.
254
sim como habita nos louvores do seu povo (cf.
Sl 22/21, 4), assim também vive intimamente no
amor conjugal que Lhe dá glória.
315. A presença do Senhor habita na família
real e concreta, com todos os seus sofrimentos,
lutas, alegrias e propósitos diários. Quando
se vive em família, é difícil fingir e mentir, não
podemos mostrar uma máscara. Se o amor anima
esta autenticidade, o Senhor reina nela com
a sua alegria e a sua paz. A espiritualidade do
amor familiar é feita de milhares de gestos reais
e concretos. Deus tem a sua própria habitação
nesta variedade de dons e encontros que fazem
maturar a comunhão. Esta dedicação une «o humano
e o divino»,369 porque está cheia do amor
de Deus. Em suma, a espiritualidade matrimonial
é uma espiritualidade do vínculo habitado pelo
amor divino.
316. A comunhão familiar bem vivida é um
verdadeiro caminho de santificação na vida ordinária
e de crescimento místico, um meio para
a união íntima com Deus. Com efeito, as exigências
fraternas e comunitárias da vida em família
são uma ocasião para abrir cada vez mais o coração,
e isto torna possível um encontro sempre
mais pleno com o Senhor. Lê-se, na Palavra de
Deus, que « quem tem ódio ao seu irmão está nas
trevas» (1 Jo 2, 11), «permanece na morte » (1 Jo
369 Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no
mundo contemporâneo Gaudium et spes, 49.
255
3, 14) e «não chegou a conhecer a Deus» (1 Jo 4,
8). O meu antecessor, Bento XVI, disse que «o
fechar os olhos diante do próximo torna cegos
também diante de Deus»370 e que, fundamentalmente,
o amor é a única luz que «ilumina incessantemente
um mundo às escuras».371 Somente
«se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece
em nós e o seu amor chegou à perfeição em
nós» (1 Jo 4, 12). Dado que « a pessoa humana
tem uma inata e estrutural dimensão social»372 e
« a primeira e originária expressão da dimensão
social da pessoa é o casal e a família »,373 a espiritualidade
encarna-se na comunhão familiar. Por
isso, aqueles que têm desejos espirituais profundos
não devem sentir que a família os afasta do
crescimento na vida do Espírito, mas é um percurso
de que o Senhor Se serve para os levar às
alturas da união mística.
Unidos em oração à luz da Páscoa
317. Se a família consegue concentrar-se em
Cristo, Ele unifica e ilumina toda a vida familiar.
Os sofrimentos e os problemas são vividos em
comunhão com a Cruz do Senhor e, abraçados a
Ele, pode-se suportar os piores momentos. Nos
dias amargos da família, há uma união com Jesus
370 Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005),
16: AAS 98 (2006), 230. 371 Ibid., 39: o. c., 250. 372 João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici
(30 de Dezembro de 1988), 40: AAS 81 (1989), 468. 373 Ibidem.
256
abandonado, que pode evitar uma ruptura. As
famílias alcançam pouco a pouco, « com a graça
do Espírito Santo, a sua santidade através da vida
matrimonial, participando também no mistério
da cruz de Cristo, que transforma as dificuldades
e os sofrimentos em oferta de amor».374 Por
outro lado, os momentos de alegria, o descanso
ou a festa, e mesmo a sexualidade são sentidos
como uma participação na vida plena da sua Ressurreição.
Os cônjuges moldam, com vários gestos
quotidianos, este « espaço teologal, onde se
pode experimentar a presença mística do Senhor
ressuscitado».375
318. A oração em família é um meio privilegiado
para exprimir e reforçar esta fé pascal.376
Podem-se encontrar alguns minutos cada dia
para estar unidos na presença do Senhor vivo,
dizer-Lhe as coisas que os preocupam, rezar pelas
necessidades familiares, orar por alguém que
está a atravessar um momento difícil, pedir-Lhe
ajuda para amar, dar-Lhe graças pela vida e as
coisas boas, suplicar à Virgem que os proteja
com o seu manto de Mãe. Com palavras simples,
este momento de oração pode fazer muito bem à
família. As várias expressões da piedade popular
são um tesouro de espiritualidade para muitas famílias.
O caminho comunitário de oração atinge
374 Relatio Finalis 2015, 87. 375 João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Vita consecrata
(25 de Marco de 1996), 42: AAS 88 (1996), 416. 376 Cf. Relatio Finalis 2015, 87.
257
o seu ponto culminante ao participarem juntos
na Eucaristia, sobretudo no contexto do descanso
dominical. Jesus bate à porta da família, para
partilhar com ela a Ceia Eucarística (cf. Ap 3, 20).
Aqui, os esposos podem voltar incessantemente
a selar a aliança pascal que os uniu e reflecte a
Aliança que Deus selou com a humanidade na
Cruz.377 A Eucaristia é o sacramento da Nova
Aliança, em que se actualiza a acção redentora
de Cristo (cf. Lc 22, 20). Constatamos, assim, os
laços íntimos que existem entre a vida conjugal e
a Eucaristia.378 O alimento da Eucaristia é força
e estímulo para viver cada dia a aliança matrimonial
como «igreja doméstica ».379
Espiritualidade do amor exclusivo e libertador
319. No matrimónio, vive-se também o sentido
de pertencer completamente a uma única pessoa.
Os esposos assumem o desafio e o anseio de
envelhecer e gastar-se juntos, e assim reflectem a
fidelidade de Deus. Esta firme decisão, que marca
um estilo de vida, é uma « exigência interior do
pacto de amor conjugal»,380 porque, « quem não
377 Cf. João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de
Novembro de 1981), 57: AAS 74 (1982), 150. 378 Não esqueçamos que a Aliança de Deus com o seu
povo se exprime como um desposório (cf. Ez 16, 8.60; Is 62, 5;
Os 2, 21-22), e a nova Aliança é apresentada também como um
matrimónio (cf. Ap 19, 7; 21, 2; Ef 5, 25). 379 Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen
gentium, 11. 380 João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro
de 1981), 11: AAS 74 (1982), 93.
258
se decide a amar para sempre, é difícil que possa
amar deveras um só dia ».381 Mas isto não teria
significado espiritual, se fosse apenas uma lei vivida
com resignação. É uma pertença do coração,
lá onde só Deus vê (cf. Mt 5, 28). Cada manhã,
quando se levanta, o cônjuge renova diante de
Deus esta decisão de fidelidade, suceda o que suceder
ao longo do dia. E cada um, quando vai
dormir, espera levantar-se para continuar esta
aventura, confiando na ajuda do Senhor. Assim,
cada cônjuge é para o outro sinal e instrumento
da proximidade do Senhor, que não nos deixa sozinhos:
«Eu estarei sempre convosco, até ao fim
dos tempos» (Mt 28, 20).
320. Há um ponto em que o amor do casal alcança
a máxima libertação e se torna um espa-
ço de sã autonomia: quando cada um descobre
que o outro não é seu, mas tem um proprietário
muito mais importante, o seu único Senhor. Ninguém
pode pretender possuir a intimidade mais
pessoal e secreta da pessoa amada, e só Ele pode
ocupar o centro da sua vida. Ao mesmo tempo,
o princípio do realismo espiritual faz com que o
cônjuge não pretenda que o outro satisfaça completamente
as suas exigências. É preciso que o
caminho espiritual de cada um – como justamente
indicava Dietrich Bonhoeffer – o ajude a « de-
381 Idem, Homilia na Eucaristia celebrada para as famílias, em
Córdova/Argentina (8 de Abril de 1987), 4: Insegnamenti 10/1
(1987), 1161-1162; L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa
de 08/V/1987), 6.
259
siludir-se » do outro,382 a deixar de esperar dessa
pessoa aquilo que é próprio apenas do amor de
Deus. Isto exige um despojamento interior. O
espaço exclusivo, que cada um dos cônjuges reserva
para a sua relação pessoal com Deus, não
só permite curar as feridas da convivência, mas
possibilita também encontrar no amor de Deus o
sentido da própria existência. Temos necessidade
de invocar cada dia a acção do Espírito, para que
esta liberdade interior seja possível.
Espiritualidade da solicitude,
da consolação e do estímulo
321. «Os esposos cristãos são cooperadores da
graça e testemunhas da fé um para com o outro,
para com os filhos e demais familiares».383 Deus
convida-os a gerar e a cuidar. Por isso mesmo, a
família «foi desde sempre o “hospital” mais pró-
ximo».384 Prestemo-nos cuidados, apoiemo-nos
e estimulemo-nos mutuamente, e vivamos tudo
isto como parte da nossa espiritualidade familiar.
A vida em casal é uma participação na obra fecunda
de Deus, e cada um é para o outro uma
permanente provocação do Espírito. O amor de
Deus exprime-se « através das palavras vivas e
concretas com que o homem e a mulher se de-
382 Cf. Gemeinsames Leben (Munique 1973), 18. 383 Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o apostolado dos
leigos Apostolicam actuositatem, 11. 384 Francisco, Catequese (10 de Junho de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 11/VI/2015), 16.
260
claram o seu amor conjugal».385 Assim, os dois
são entre si reflexos do amor divino, que conforta
com a palavra, o olhar, a ajuda, a carícia, o
abraço. Por isso, « querer formar uma família é
ter a coragem de fazer parte do sonho de Deus, a
coragem de sonhar com Ele, a coragem de construir
com Ele, a coragem de unir-se a Ele nesta
história de construir um mundo onde ninguém
se sinta só».386
322. Toda a vida da família é um «pastoreio»
misericordioso. Cada um, cuidadosamente, desenha
e escreve na vida do outro: «A nossa carta
sois vós, uma carta escrita nos nossos corações
(...) não com tinta, mas com o Espírito do Deus
vivo» (2 Cor 3, 2-3). Cada um é um «pescador
de homens» (Lc 5, 10) que, em nome de Jesus,
lança as redes (cf. Lc 5, 5) para os outros, ou
um lavrador que trabalha nesta terra fresca que
são os seus entes queridos, incentivando o melhor
deles. A fecundidade matrimonial implica
promover, porque « amar uma pessoa é esperar
dela algo indefinível e imprevisível; e é, ao mesmo
tempo, proporcionar-lhe de alguma forma
os meios para satisfazer tal expectativa ».387 Isto é
um culto a Deus, pois foi Ele que semeou muitas
385 João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro
de 1981), 12: AAS 74 (1982), 93. 386 Francisco, Discurso na Festa das Famílias e Vigília de Ora-
ção, em Filadélfia (26 de Setembro de 2015): L’Osservatore Romano
(ed. semanal portuguesa de 08/X/2015), 2. 387 Gabriel Marcel, Homo viator: prolégomènes à une métaphysique
de l´espérance (Paris 1944), 63.
261
coisas boas nos outros, com a esperança de que
as façamos crescer.
323. É uma experiência espiritual profunda
contemplar cada ente querido com os olhos de
Deus e reconhecer Cristo nele. Isto exige uma
disponibilidade gratuita que permita apreciar a
sua dignidade. É possível estar plenamente presente
diante do outro, se uma pessoa se entrega
gratuitamente, esquecendo tudo o que existe
em redor. Assim a pessoa amada merece toda a
atenção. Jesus era um modelo, porque, quando
alguém se aproximava para falar com Ele, fixava
nele o seu olhar, olhava com amor (cf. Mc 10,
21). Ninguém se sentia transcurado na sua presença,
pois as suas palavras e gestos eram expressão
desta pergunta: «Que queres que te faça?»
(Mc 10, 51). Vive-se isto na vida quotidiana da
família. Nela, recordamos que a pessoa que vive
connosco merece tudo, pois tem uma dignidade
infinita por ser objecto do amor imenso do Pai.
Assim floresce a ternura, capaz de «suscitar no
outro a alegria de sentir-se amado. Exprime-se,
de modo particular, no debruçar-se com delicada
atenção sobre os limites do outro, especialmente
quando aparecem de forma evidente ».388
324. Sob o impulso do Espírito, o núcleo familiar
não só acolhe a vida gerando-a no próprio
seio, mas abre-se também, sai de si para derramar
388 Relatio Finalis 2015, 88.
262
o seu bem nos outros, para cuidar deles e procurar
a sua felicidade. Esta abertura exprime-se
particularmente na hospitalidade,389 que a Palavra
de Deus encoraja de forma sugestiva: «Não
vos esqueçais da hospitalidade, pois, graças a ela,
alguns, sem o saberem, hospedaram anjos» (Heb
13, 2). Quando a família acolhe e sai ao encontro
dos outros, especialmente dos pobres e abandonados,
é «símbolo, testemunho, participação da
maternidade da Igreja ».390 Na realidade, o amor
social, reflexo da Trindade, é o que unifica o sentido
espiritual da família e a sua missão fora de si
mesma, porque torna presente o querigma com
todas as suas exigências comunitárias. A família
vive a sua espiritualidade própria, sendo ao mesmo
tempo uma igreja doméstica e uma célula
viva para transformar o mundo.391
* * *
325. As palavras do Mestre (cf. Mt 22, 30) e as
de São Paulo (cf. 1 Cor 7, 29-31) sobre o matrimónio
estão inseridas – não por acaso – na dimensão
última e definitiva da nossa existência,
que precisamos de recuperar. Assim, os esposos
poderão reconhecer o sentido do caminho que
estão a percorrer. Com efeito, como recordamos
389 Cf. João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de
Novembro de 1981), 44: AAS 74 (1982), 136. 390 Ibid., 49: o. c., 141. 391 Sobre os aspectos sociais da família, cf. Pont. Conselho
«Justiça e Paz », Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 248-
254.
263
várias vezes nesta Exortação, nenhuma família é
uma realidade perfeita e confeccionada duma vez
para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento
da sua capacidade de amar. Há um apelo
constante que provém da comunhão plena da
Trindade, da união estupenda entre Cristo e a sua
Igreja, daquela comunidade tão bela que é a famí-
lia de Nazaré e da fraternidade sem mácula que
existe entre os Santos do céu. Mas contemplar a
plenitude que ainda não alcançámos permite-nos
também relativizar o percurso histórico que estamos
a fazer como família, para deixar de pretender
das relações interpessoais uma perfeição,
uma pureza de intenções e uma coerência que só
poderemos encontrar no Reino definitivo. Além
disso, impede-nos de julgar com dureza aqueles
que vivem em condições de grande fragilidade.
Todos somos chamados a manter viva a tensão
para algo mais além de nós mesmos e dos nossos
limites, e cada família deve viver neste estímulo
constante. Avancemos, famílias; continuemos a
caminhar! Aquilo que se nos promete é sempre
mais. Não percamos a esperança por causa dos
nossos limites, mas também não renunciemos a
procurar a plenitude de amor e comunhão que
nos foi prometida.
Oração à Sagrada Família
Jesus, Maria e José,
em Vós contemplamos
o esplendor do verdadeiro amor,
confiantes, a Vós nos consagramos.
Sagrada Família de Nazaré,
tornai também as nossas famílias
lugares de comunhão e cenáculos de oração,
autênticas escolas do Evangelho
e pequenas igrejas domésticas.
Sagrada Família de Nazaré,
que nunca mais haja nas famílias
episódios de violência, de fechamento e divisão;
e quem tiver sido ferido ou escandalizado
seja rapidamente consolado e curado.
Sagrada Família de Nazaré,
fazei que todos nos tornemos conscientes
do carácter sagrado e inviolável da família,
da sua beleza no projecto de Deus.
Jesus, Maria e José,
ouvi-nos e acolhei a nossa súplica.
Ámen.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no
Jubileu Extraordinário da Misericórdia, a 19 de
Março – solenidade de São José – do ano 2016,
quarto do meu Pontificado.
265
ÍNDICE
A alegria do amor [1-7] . . . . . . . . 3
capítulo i
À LUZ DA PALAVRA
Tu e a tua esposa [9-13] . . . . . . . . 10
Os teus filhos como rebentos de oliveira
[14-18] . . . . . . . . . . . . . . 13
Um rasto de sofrimento e sangue [19-22] 17
O fruto do teu próprio trabalho [23-26] 19
A ternura do abraço [27-30] . . . . . . 21
capítulo ii
A REALIDADE E OS DESAFIOS DAS FAMÍLIAS
A situação actual da família [32-49] . . . 25
Alguns desafios [50-57] . . . . . . . . 42
capítulo iii
O OLHAR FIXO EM JESUS:
A VOCAÇÃO DA FAMÍLIA
Jesus recupera e realiza plenamente o
projecto divino [61-66] . . . . . . . 52
A família nos documentos da Igreja [67-70] 56
O sacramento do matrimónio [71-75] 59
Sementes do Verbo e situações imperfeitas
[76-79] . . . . . . . . . . . . . 63
266
A transmissão da vida e a educação dos filhos
[80-85] . . . . . . . . . . . . 66
A família e a Igreja [86-88] . . . . . . 71
capítulo iv
O AMOR NO MATRIMÓNIO
O nosso amor quotidiano [90] . . . . . 73
Paciência [91-92] . . . . . . . . . . 74
Atitude de serviço [93-94] . . . . . . . 76
Curando a inveja [95-96] . . . . . . . . 77
Sem ser arrogante nem se orgulhar [97-98] . . 78
Amabilidade [99-100] . . . . . . . . 80
Desprendimento [101-102] . . . . . . . 81
Sem violência interior [103-104] . . . . . 83
Perdão [105-108] . . . . . . . . . . 84
Alegrar-se com os outros [109-110] . . . . 86
Tudo desculpa [111-113] . . . . . . . . 87
Confia [114-115] . . . . . . . . . . 89
Espera [116-117] . . . . . . . . . . 90
Tudo suporta [118-119] . . . . . . . . 91
Crescer na caridade conjugal [120-122] . 93
A vida toda, tudo em comum [123-125] . . . 95
Alegria e beleza [126-130] . . . . . . . 98
Casar-se por amor [131-132] . . . . . . 101
Amor que se manifesta e cresce [133-135] . . 103
O diálogo [136-141] . . . . . . . . . 106
Amor apaixonado [142] . . . . . . . . 109
O mundo das emoções [143-146] . . . . . 110
Deus ama a alegria dos seus filhos [147-149] . 112
A dimensão erótica do amor [150-152] . . . 114
Violência e manipulação [153-157] . . . . 116
Matrimónio e virgindade [158-162] . . . . 120
A transformação do amor [163-164] . . . 125
267
capítulo v
O AMOR QUE SE TORNA FECUNDO
Acolher uma nova vida [166-167] . . . . 129
O amor na expectativa própria da gravidez
[168-171] . . . . . . . . . . . . . 131
Amor de mãe e de pai [172-177] . . . . . 134
Fecundidade alargada [178-184] . . . . 140
Distinguir o Corpo [185-186] . . . . . . 145
A vida na família em sentido amplo [187] . 147
Ser filho [188-190] . . . . . . . . . . 147
Os idosos [191-193] . . . . . . . . . 149
Ser irmão [194-195] . . . . . . . . . 152
Um coração grande [196-198] . . . . . . 153
capítulo vi
ALGUMAS PERSPECTIVAS PASTORAIS
Anunciar hoje o Evangelho da família
[200-204] . . . . . . . . . . . . . 157
Guiar os noivos no caminho de preparação
para o matrimónio [205-211] . . . . . 161
A preparação da celebração [212-216] . . . 167
Acompanhamento nos primeiros anos da
vida matrimonial [217-222] . . . . . 171
Alguns recursos [223-230] . . . . . . . 177
Iluminar crises, angústias e dificuldades [231] 183
O desafio das crises [232-238] . . . . . . 183
Velhas feridas [239-240] . . . . . . . . 188
Acompanhar depois das rupturas e dos divórcios
[241-246] . . . . . . . . . . . . . 190
Algumas situações complexas [247-252] . . 195
Quando a morte crava o seu aguilhão
[253-258] . . . . . . . . . . . . . 199
capítulo vii
REFORÇAR A EDUCAÇÃO DOS FILHOS
Onde estão os filhos? [260-262] . . . . 205
A formação ética dos filhos [263-267] . . 207
O valor da sanção como estímulo [268-270] 210
Realismo paciente [271-273] . . . . . . 212
A vida familiar como contexto educativo
[274-279] . . . . . . . . . . . . . 214
Sim à educação sexual [280-286] . . . . 219
Transmitir a fé [287-290] . . . . . . . 224
capítulo viii
ACOMPANHAR, DISCERNIR
E INTEGRAR A FRAGILIDADE
A gradualidade na pastoral [293-295] . . 230
O discernimento das situações chamadas
«irregulares » [296-300] . . . . . . . 233
As circunstâncias atenuantes no discernimento
pastoral [301-303] . . . . . . 239
As normas e o discernimento [304-306] . 243
A lógica da misericórdia pastoral [307-312] 246
capítulo ix
ESPIRITUALIDADE CONJUGAL E FAMILIAR
Espiritualidade da comunhão sobrenatural
[314-316] . . . . . . . . . . . . . 253
Unidos em oração à luz da Páscoa [317-318] 255
Espiritualidade do amor exclusivo e libertador
[319-320] . . . . . . . . . . 257
Espiritualidade da solicitude, da consolação
e do estímulo [321-324] . . . . 259
Oração à Sagrada Família [325] . . . . . 263
TIPOGRAFIA VATICANA
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